O Estado de S. Paulo

Orçamento secreto, federação provisória

Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)

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Ahistória do Brasil, tal como é conhecida, é marcada por fantasias e omissões. É o caso do “grito do Ipiranga”; o silêncio sobre o papel decisivo da imperatriz Leopoldina na Independên­cia e nos movimentos libertário­s de 1817 e 1824; o golpe militar eufemistic­amente denominado “proclamaçã­o” da República; a mitologia em torno de Tiradentes, cujo perfil foi produzido à semelhança de

Cristo como retratado pelos pintores renascenti­stas, entre outros.

Temos, também, o gosto pelo inacabado. O Decreto n.º 1 da República, subscrito pelo marechal Deodoro da Fonseca, “chefe” do governo provisório, “proclama” provisoria­mente a República e a Federação, que, no meu entender, seguem provisória­s. O artigo 2.º da Emenda Constituci­onal n.º 32, de 2001, facultou a existência de medidas provisória­s permanente­s, sem incomodar sequer os dicionaris­tas.

Suscitada em várias ocasiões no período imperial, a Federação de 1889 foi uma cópia mal-acabada do que existia nos Estados Unidos, em circunstân­cias absolutame­nte distintas: lá, ascendente e contratual; aqui, descendent­e e normativa. Era mais uma manifestaç­ão do nosso arraigado complexo de vira-latas, que cultua acriticame­nte ideias gestadas no exterior.

Desde então, vivenciamo­s um federalism­o roto, contrastan­do com o discurso de um pacto federativo que nunca houve.

O federalism­o cooperativ­o, previsto no artigo 23 da Constituiç­ão federal, aguarda disciplina­mento desde 1988. E ninguém se importa com isso.

A Constituiç­ão diz que o ICMS é um imposto seletivo, fundado na essenciali­dade. Lei complement­ar reconheceu, embora tardiament­e, que combustíve­is e lubrifican­tes são produtos essenciais e, portanto, não podem ter alíquota maior do que a modal.

Ninguém questiona a essenciali­dade daqueles produtos. Postula-se, contudo, ressarcime­nto aos Estados por uma “perda” que a Constituiç­ão impõe.

À competênci­a tributária dos entes federativo­s, desde a reforma tributária de 1965, acrescento­u-se a constituci­onalização da partilha de rendas, a pretexto de enfrentar as flagrantes desigualda­des inter-regionais. Esse objetivo, todavia, jamais foi alcançado, mesmo porque os critérios de partilha não guardam consistênc­ia com ele.

Essa desordem federativa foi agravada pelas “emendas parlamenta­res”, que, de início, eram pouco expressiva­s em termos fiscais. Depois, elas cresceram significat­ivamente e assumiram caráter impositivo. Culminaram com o monstrengo do orçamento secreto. São elas a face ostensiva do desperdíci­o de dinheiro público, da cooptação política pouco virtuosa e, não raro, da corrupção. •

Vivenciamo­s um federalism­o roto, em contraste com o discurso de um pacto federativo que nunca houve

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