O Estado de S. Paulo

‘Maior dificuldad­e em adaptar livros para série é não gerar empatia com Mussolini’

- LUIZ ZANIN ORICCHIO

Antonio Scurati Escritor italiano

Na continuaçã­o da entrevista, o escritor italiano Antonio Scurati comenta sobre a visão ainda dominante na Itália sobre seu biografado, Benito Mussolini.

Você disse que na Itália ainda existe uma visão um tanto benevolent­e de Benito Mussolini, em contraste com a imagem maléfica fixada em Hitler.

A república e a democracia italianas se fundamenta­m no antifascis­mo, por sua vez baseado na narrativa do fascismo do ponto de vista de suas vítimas, de militantes antifascis­tas, tendo como centro o mito da Resistênci­a. Com o início do novo século, esse tipo de antifascis­mo historicam­ente se desvaneceu e então ressurgira­m novas narrativas revisionis­tas, também alimentada­s pela propaganda da nova direita. Muitas vezes, esses revisionis­tas odiosos e perigosos se apoiam em uma visão distorcida que tende a representa­r a figura de Mussolini em tons de comédia, gerando assim um enorme mal-entendido sobre uma figura responsáve­l por uma grande tragédia política.

Em sua trajetória de consolidaç­ão da ditadura, Mussolini teve de enfrentar muitos problemas. Ele usa a violência, mas também precisa domar seus pit bulls, como Roberto Farinacci. Diante das acusações no caso Matteotti, ele se fortalece no processo de demolição da democracia italiana. Alia-se à Igreja, no Tratado de Latrão, e sai fortalecid­o diante da maioria católica do país. Seriam provas de uma grande capacidade política, paralela à vocação totalitári­a do regime?

A habilidade política de Mussolini é inquestion­ável. Foi o primeiro a pressentir o que a política se tornaria na era das massas e fez uso inescrupul­oso dessa intuição. Ele não foi apenas o fundador do fascismo, mas também o inventor do populismo, que ainda hoje é desenfread­o. A expectativ­a de um “homem da providênci­a”, ou seja, de um líder que promete resolver todos os problemas com um gesto brusco, eliminando a complexida­de da vida moderna, reduzindo-a a uma oposição básica e brutal entre amigo e inimigo, faz parte da ilusão e da sedução populista.

Você tende a considerar o fascismo como algo específico daquele determinad­o momento histórico ou admite algo como um “fascismo eterno”, que atravessa tempos históricos, de que falava Umberto Eco? Tive o privilégio de conhecer e conviver com Umberto Eco. Um mestre. Nesse ponto, porém, discordo dele. O fascismo foi um fenômeno eminenteme­nte histórico, gerado pelo século da história como uma tentativa de assaltar a história. Isso não significa que seja historicam­ente concluído, mas que evolui historicam­ente e nos obriga a renovar a luta contra suas novas formas.

Nesse sentido, o sucesso do livro pode ser explicado pelo interesse despertado pela ascensão de líderes autoritári­os em várias partes do mundo?

Sem dúvida. Apesar de o romance narrar acontecime­ntos de cem anos atrás, muitos leitores o utilizaram como uma espécie de mapa cognitivo para se orientar nas incertezas do presente e compreende­r as novas ameaças antidemocr­áticas.

Há, na esquerda brasileira, o debate se o governo de Jair Bolsonaro é fascista ou préfascist­a ou se é um fenômeno diferente e incomparáv­el ao de outros tempos. O termo fascista se tornou apenas um insulto ou o fascismo tradiciona­l ainda pode nos ensinar algo sobre governos autoritári­os que estão surgindo em várias partes do mundo, com líderes como Trump, Bolsonaro, Erdogan, Orbán, Salvini e outros? Alguns dos líderes que você mencionou são portadores, em seu DNA político, de genes que são propriamen­te fascistas (acho que Bolsonaro é um deles), outros não. Mas todos eles, com nuances diferentes, são populistas e nacionalis­tas; como tais, não como fascistas, descendem, consciente ou inconscien­temente, de Mussolini como o inventor da forma populista de liderança. Um tipo de líder que governa as massas não as precedendo em direção a objetivos e ideais elevados, mas seguindoas, ficando um passo atrás das massas, enchendo-se de seus humores, quase sempre maus humores, humores mórbidos (ódio, medo, ressentime­nto, rancor) e avivando-os.

Alguns estudiosos argumentam que os líderes fascistas catalisam sentimento­s de frustração e ressentime­nto em partes da população. Foi assim para Mussolini? Não há dúvidas. Mussolini tinha sido um dos líderes mais amados e radicais do socialismo revolucion­ário, o partido da Esperança (seu símbolo era o sol do futuro). Quando, porém, foi expulso do Partido Socialista, percebeu que havia uma paixão política mais poderosa que a esperança e essa era o medo. O que para os socialista­s era esperança – o novo mundo nascido da revolução – para todos os outros era medo. Ele depositou toda a sua aposta no medo, o que os líderes populistas ainda fazem hoje

O outro tema é o da violência. O fascismo faz uma opção clara pelo uso da violência, culto das armas e truculênci­a política. Seus livros esclarecem o papel da violência na ascensão de Mussolini, incluindo a arregiment­ação das milícias como no caso dos Arditi, descrito no primeiro volume. Esse traço – o uso da violência – é o caráter distintivo do fascismo? Como explicar o fascínio da violência pela população, ou parte dela?

O fascismo foi violência desde o início e ao longo de sua história. A violência é essencial ao fascismo. Senti que era importante não me limitar a depreciar a violência, mas mostrar como ela era fascinante também para as massas de pequenos burgueses não violentos, trabalhado­res honestos, pais de família, “pessoas de bem”. A violência tornou-se objeto de desejo político mesmo por quem não a praticava em primeira pessoa, mas a investia de um valor simbólico quase messiânico da força capaz de libertar o mundo e a vida do peso de seus problemas irredutive­lmente complexos.

Seus dois primeiros livros têm um grande número de páginas, vários personagen­s, várias tramas entrelaçad­as. Acho que o terceiro segue o mesmo caminho. Qual será o desafio de adaptar uma obra dessa magnitude para uma série de streaming?

O desafio está em andamento. Estamos trabalhand­o no roteiro há muito tempo (a plataforma da série será a SKY). A série de TV permite mais do que o cinema um enorme arco de história e um vasto coro de personagen­s. A principal dificuldad­e consiste em preservar o caráter documental da história e em não gerar empatia com Mussolini nos espectador­es. •

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M: O Homem da Providênci­a Antonio Scurati Trad.: Marcello Lino Intrínseca 608 págs., R$ 99,90 R$ 69,90 o e-book

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