O Estado de S. Paulo

Um raro ser politicame­nte atuante de sua geração

- JULIO MARIA É jornalista e crítico de música

Achegada aos 80 anos costuma ser o último fechamento dos períodos produtivos de um ser humano. Oitenta anos ainda guardam energia, criativida­de, memória. Noventa, talvez não. Gil chegou muito bem e produzindo como um garoto, topando um giro pelo mundo com a família para virar série da Amazon e todas as homenagens prestadas pelo Google, pelos biógrafos e pelos fãs. Gil, Ney Matogrosso, Roberto Carlos e Caetano, todos, cada um a sua maneira, estão muito bem.

Caetano repassou recentemen­te os capítulos de sua traumática prisão seguida de exílio em Londres no ano de 1971 em um documentár­io chamado Narciso em Férias, que teve estreia no Festival de Veneza de 2020. Mais recentemen­te, o poeta Eucanaã Ferraz organizou um livro com todas as canções escritas por ele. Uma forma de biografar não sua vida, já feita de forma quase definitiva pelo próprio em Verdade Tropical, mas o seu pensamento. Ler poema atrás de poema é como testemunha­r as transforma­ções de sua escrita. Assim como sua música, ela também passa por fases e marcas que vão se modificand­o com o tempo, mas que sempre serão identifica­das como de Caetano.

O tempo passou e o próprio Caetano mudou. Ele parece falar menos, trazer mais serenidade quando fala e chegar bem menos aos picos emocionais que marcavam suas entrevista­s até o início dos anos 2000. É um intoleráve­l aos erros de português assim como não suporta chiliques higienista­s da classe média alta desde muito tempo. Em 1973, encarou os estudantes playboys que resolveram vaiar Odair José no festival Phono 73, no Anhembi. Em 1999, foi a vez de encarar as pessoas que vaiaram João Gilberto na estreia da então casa de shows Credicard Hall.

O Brasil envelhece mal perto de Caetano. Sua mulher e empresária, Paula Lavigne, não o deixa de fora de questões com que, acredita, o marido deva estar envolvido. Sensível sobretudo aos destratos ambientais, aos desmandos policiais, às desavenças autoritári­as e, nominalmen­te, a Jair Bolsonaro, Caetano rompeu com as próprias tradições e, depois de se aproximar de Ciro Gomes por um tempo, decidiu declarar seu voto em Lula para 2022. Ao contrário de Ney, Roberto, Gil e Milton, e ao lado de um Chico muito calado, tornou-se o único compositor de massas político e atuante de sua geração. •

 ?? REPRODUÇÃO - 29/6/1976 ?? 1. Ao lado de Bethânia, Gal e Gil: os Doces Bárbaros
REPRODUÇÃO - 29/6/1976 1. Ao lado de Bethânia, Gal e Gil: os Doces Bárbaros
 ?? J.F. DIORIO/ESTADÃO - 29/09/1999 ?? 2. Em 1999, com João Gilberto no Credicard Hall
J.F. DIORIO/ESTADÃO - 29/09/1999 2. Em 1999, com João Gilberto no Credicard Hall
 ?? FABIO MOTTA/ESTADÃO - 15/8/2018 ?? 3. Com os filhos e Bethânia (2018)
FABIO MOTTA/ESTADÃO - 15/8/2018 3. Com os filhos e Bethânia (2018)

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