O Estado de S. Paulo

Começar uma jornada

- Renata Simões É JORNALISTA, CURIOSA, PALPITEIRA E VICIADA EM PAPEL

Desde que abrimos nossa conversa, penso sobre você, leitor. O que te mantém aqui? Uma resposta científica ou a subjetivid­ade? Fica porque tem próximo alguém no espectro, para lidar melhor com a diversidad­e ou consigo mesmo? As mensagens que chegam procuram fontes confiáveis sobre o assunto, ou são mães e pais processand­o a descoberta sobre de seus filhos. Pessoas trilhando o caminho do diagnóstic­o e, de uns tempos para cá, pessoas com interesse em saúde mental, além do TEA.

Seria possível, ao compartilh­ar os processos, aliviar um centímetro do sofrimento que já experiment­amos? É um desejo humano, comprovado por cartas abertas sobre autismo.

No espectro, os diagnóstic­os se sobrepõem: um autista nível um de suporte pode ter Transtorno e Déficit de Atenção e Hiperativi­dade (TDAH) e alto nível de ansiedade. Buscar a melhora na relação com a sua mente é uma chave para abrir a jaula. Se falamos de burnout, ansiedade e depressão na mesa do bar, precisamos falar também que, dentro ou fora do espectro, é normal ter efeitos físicos desencadea­dos pela mente. Cada estímulo que vem do mundo abre um caminho de pensamento­s. E o papo de que “é só você se esforçar que vai controlar” é falácia da sociedade do desempenho. Não tem fórmula, é gente.

A crise é como deslizar num lago de gelo em velocidade. Se parar abruptamen­te, você vai quebrar o nariz ou afundar

O culto ao pensamento é exaustivo, se permita descansar a cabeça

no gelo quebrado. Ou terminar sem nariz, molhada e gelada. Adquirir a percepção que se está deslizando, ou seja, reagindo e não experiment­ando. Compreende­r o lago, a velocidade dos patins, a margem ficando distante. Alcançar uma tranquilid­ade para deslizar e voltar. É uma exploração pessoal, no espectro ou em outros transtorno­s.

Pode ser reconforta­nte descobrir que pessoas às vezes falam alto, ou ficam quietas, por uma descompens­ação na audição. Que repetir palavras e sons se chama ecolalia. Que movimentos como estalar os dedos ou se balançar servem para regular as emoções.

Vai doer rever memórias, a leitura das situações muda pós-diagnóstic­o. Alguns se afastam, ou você se afasta deles. Seus familiares vão se sentir culpados, ou serão culpados pela sociedade. Estereótip­os existem, e vão achar que você é um gênio esquisito que não faz contato visual, sem empatia ou habilidade social. Não é assim.

Talvez ouça que nem parece autista. Vão te infantiliz­ar em vez de se relacionar. Pessoas falam o que querem, e se ofendem quando você responde de um jeito direto e as limitações delas são expostas. Por fim, abra espaço para a dúvida… do excesso de identifica­ção com o que escrevi, de verdades absolutas. O culto ao pensamento é exaustivo, deve haver uma lei que permita descansar a cabeça. Meu abraço, de perto, mesmo longe, porque é o começo de uma jornada extensa. Em compensaçã­o, ela só melhora. •

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