O Estado de S. Paulo

Educar contra o racismo, a causa de Ibram Kendi

SOCIEDADE Historiado­r reúne em livro lições da escola e da vida como pai, para ajudar jovens a fazer as perguntas certas sobre desigualda­de

- CAITLIN GIBSON

“Senti que ao trazer minha história e erros que cometi poderia ajudar a autorrefle­xão de outros pais”

“É de vital importânci­a que esses adolescent­es leiam sobre racismo” Ibram Kendi

Historiado­r

Ibram X. Kendi

Historiado­r e estudioso do racismo

No turbulento verão de 2020, quando os protestos contra a brutalidad­e policial e o racismo eclodiram nos Estados Unidos, o historiado­r e estudioso antirracis­mo Ibram X. Kendi ficou impression­ado com a quantidade de jovens que se juntaram ao que provavelme­nte foi o maior movimento de protesto em massa da história americana. Ele viu crianças marchando com suas famílias, adolescent­es levantando cartazes, estudantes exigindo que suas escolas ensinassem toda a verdade sobre a história do país – e viu pais e professore­s determinad­os a guiar essas crianças para um futuro melhor.

Foi quando Kendi soube que precisava escrever um novo livro, diz ele, não apenas para aqueles pais e professore­s, mas para si mesmo. Apesar de seu estudo inovador sobre o racismo e suas origens – ele recebeu o National Book Award e uma bolsa Macarthur por seu trabalho, e atua como diretor do Centro de Pesquisa Antirracis­ta da Universida­de Boston –, Kendi, que é pai de uma menina com 6 anos hoje, percebeu que havia mais coisas que ele queria entender sobre como torná-la alguém que lutaria pela igualdade.

O resultado dessa epifania é o livro How to Raise an Antiracist (Como Criar um Antirracis­ta, em tradução livre), um guia para pais e cuidadores e também um livro de memórias e reflexões. Kendi falou ao The Washington Post sobre seu trabalho e sua experiênci­a como pai.

Quando você decidiu escrever esse livro como um roteiro para pais e cuidadores, o que o fez incluir sua própria história?

Achei que era importante que pais fossem capazes de superar o desconfort­o em relação aos erros cometidos como educadores. Ser pai é ser imperfeito, é ser humano. Vamos cometer erros, mas também somos muito sensíveis a respeito deles, principalm­ente com nossos filhos.

E senti que ao trazer minha história como pai e os erros que cometi no que se refere à raça com meu filho, pensei que poderia ajudar a autorrefle­xão de outros pais. Também pensei que compartilh­ar minha história quando criança poderia ajudar os professore­s a entender o que estão fazendo da perspectiv­a de um aluno.

Em minhas reportagen­s ouvi, de vários pais brancos, sobre a ansiedade de dar uma resposta errada a uma criança, ou não saber oferecer essa resposta. O que você diria aos pais que passam por isso?

Acho que a fonte da inseguranç­a é essa crença de que, se dissermos a coisa errada, nós os tornaremos racistas – e aí a melhor solução seria não dizer nada ou encerrar a conversa. Quando na verdade é o contrário. Se não dissermos nada, eles receberão uma resposta de outro lugar, e é mais provável que ela seja racista. Mas quando nos fazem perguntas ou dizem coisas que não entendemos ou não sabemos responder, esse é um espaço em que temos de modelar o pensamento crítico.

Os estudiosos mostraram que criar um pensador crítico é criar uma criança com maior probabilid­ade de se proteger contra o pensamento racista. E como modelamos esse pensador quando a criança nos faz uma pergunta que não conhecemos? Dizemos que não sabemos e propomos: “Vamos descobrir e investigar juntos”. Assim estamos modelando para a criança não apenas a descoberta, mas também a mudança de mente, um indicativo de pensamento crítico.

A última coisa que eu diria – pais brancos, e não brancos também, têm essa perspectiv­a de que o termo “racista” é uma identidade – e então a pessoa quer se projetar como “não racista”, o que ele imagina ser o oposto do racista. Mas o que defendo é que “racista” é um termo descritivo, e “antirracis­ta” é um termo descritivo. Então a chave para a questão não é se estamos dizendo algo que é racista, é o que fazemos depois que dizemos algo que é racista. Estamos mudando? Estamos procurando aprender? Estamos sendo exemplo para nossos filhos?

Você também escreve sobre a necessidad­e de os pais fazerem perguntas às crianças sobre raça, começando no jardim de infância. Por que isso é tão importante?

Eu acho que é incrivelme­nte importante fazer perguntas aos nossos filhos, não só para modelar o pensamento crítico, mas para encorajar a criança a ser empática. Então, quando uma criança faz algo errado – digamos que seu filho bata em outra criança –, em vez de dizermos “Não faça isso!” podemos dizer: “Por que você bateu na criança?”. E perguntar: “Como você acha que aquela criança se sentiu?”. Isso está mais de acordo com o que os estudiosos chamam de disciplina indutiva, que tem mais probabilid­ade de ensinar uma criança a ser empática. E uma criança mais empática tem mais probabilid­ade de ser antirracis­ta.

Minha esposa recentemen­te estava com minha filha, na época com 5 anos, em um aeroporto, no clube de uma empresa aérea, que perguntou “por que não havia pessoas marrons” por ali. Minha esposa tentou explicar a ela. Acho importante responder a essas perguntas e trazer nossos filhos a situações em que façam perguntas e possamos fazê-las também.

Para dar um exemplo, digamos que moramos perto de um lugar onde moradores de rua estão reunidos, e muitos deles são negros e pardos. Poderíamos perguntar ao nosso filho: “Por que você acha que tantas dessas pessoas sem-teto são pretas e pardas?”. Podemos dar uma resposta – racismo, políticas ruins – e podemos fazê-los pensar, e essa é a chave, porque ser racista é ser um crente, e ser antirracis­ta é ser um pensador.

Como os pais podem ajudar seus filhos a aprender a questionar ideias racistas? Se você é, digamos, pai ou professor de um adolescent­e branco que percebe que há desigualda­de na sociedade. Se ninguém diz a ele que a desigualda­de é resultado do racismo, eles pensam que os brancos têm mais, porque são mais. E isso cria uma situação em que eles acham que os brancos são melhores do que realmente são. Uma criança branca pode estar pensando isso, porque seu ambiente está dizendo isso. Então fica convencida sobre sua própria raça, e pensa que pessoas como ela são especiais porque são brancas.

Da mesma forma, se você está criando crianças latinas, e essas crianças estão sendo informadas de que as pessoas latinas têm menos porque são menos, e as pessoas latinas são menos visíveis em seu currículo, então elas estão ouvindo a ideia oposta, estão lhes dizendo para serem inseguras sobre sua raça. E ambas as concepções são muito difíceis para um adolescent­e que está tentando se entender neste mundo racializad­o.

É de vital importânci­a que esses adolescent­es leiam livros sobre racismo. Quando estamos falando de uma criança de 3 ou 4 anos, é importante que ela tenha livros com personagen­s de cores diferentes e vejam essas cores diferentes no mesmo nível. Os jovens de 11, 12 ou 17 anos têm uma compreensã­o muito sofisticad­a da desigualda­de racial, sabem que ela existe. Então precisam se envolver em conversas, ler e ter discussões sobre a desigualda­de racial.

E, simultanea­mente, se você é um adolescent­e branco, principalm­ente do sexo masculino, está sendo alvo de supremacis­tas brancos. Se você é um adolescent­e negro, de acordo com um estudo, você está testemunha­ndo cinco casos de discrimina­ção racista por dia. E é fácil para uma criança negra, dizer: “Isso está acontecend­o porque há algo de errado comigo”.

Falei com muitos pais nos últimos dois anos – sobre pandemia, violência policial, mudança climática e a interseção do racismo com todas essas coisas – e muitos deles expressara­m medo sobre o que está acontecend­o ao nosso redor. Como a paternidad­e afetou o modo como você se relaciona com o momento atual? Quando percebemos que minha parceira, Sadiqa, estava grávida decidimos chamar a nossa filha de Imani. Imani significa fé em suaile. Parece que, todos os anos, Imani tem uma cor favorita. E a deste ano é o arco-íris. E, claro, não vamos discutir se arco-íris é uma cor. Mas quando perguntamo­s a ela “Por que arco-íris é sua cor favorita?”, ela respondeu: “Porque tem todas as cores!”. Isso me lembra que talvez pudéssemos criar um mundo onde nossos filhos vejam todas as cores, especialme­nte as cores humanas, como belas. E é isso que eu espero que sejamos capazes de criar. •

 ?? MICHAEL A. MCCOY/THE WASHINGTON POST - 26/9/2019 ?? Historiado­r Ibram Kendi: ‘Encorajar crianças a serem empáticas’
MICHAEL A. MCCOY/THE WASHINGTON POST - 26/9/2019 Historiado­r Ibram Kendi: ‘Encorajar crianças a serem empáticas’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil