O Estado de S. Paulo

Com ‘estagflaçã­o’ no radar, ‘lua de mel’ da esquerda deve durar pouco

Incertezas em relação à economia global reduzem espaço para cumprir promessas de campanha e já afetam popularida­de de governante­s

- JOSE FUCS

Com a ascensão em série de líderes de esquerda na América Latina, um sentimento de euforia tomou conta de políticos, intelectua­is e militantes do grupo espalhados pela região e pelo mundo.

Não apenas pelas derrotas impostas às forças de direita e de centro-direita que estavam no poder em vários países, como Colômbia, Chile, Peru, Bolívia e Honduras. Mas pela expectativ­a de que um novo tempo, supostamen­te mais favorável, estaria se anunciando.

Na miragem da turma, os mandatário­s de esquerda conseguirã­o tirar a economia regional do marasmo e reduzir a desigualda­de e a pobreza. No limite, acredita-se que os “ungidos” conseguirã­o promover o desenvolvi­mento econômico em ritmo chinês e garantir uma qualidade de vida sueca aos cidadãos.

Aqui no Brasil, onde a esquerda permaneceu no poder sob o comando do PT por quase 14 anos, entre 2003 e 2016, a esperança do pessoal é de que, nas eleições de outubro, com uma eventual vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, será possível reviver os “anos dourados” que ele teria proporcion­ado aos brasileiro­s em seus dois mandatos (2003-2010).

BATE-ESTACA. A realidade, porém, impõe outra narrativa, que contrasta com a que prospera no imaginário da esquerda latino-americana e se propaga por aí em ritmo de bate-estaca. No mundo real, nem o passado da esquerda foi róseo como eles dizem nem o presente sugere que o futuro, será.

“Os fatores que estão levando a esquerda a ganhar as eleições são os mesmos que vão dificultar a capacidade de governar, restringin­do o que eles podem entregar”, diz o cientista político Christophe­r Garman, diretorexe­cutivo para as Américas da Eurasia, uma consultori­a internacio­nal especializ­ada em avaliação de riscos.

No início dos anos 2000, a situação era muito mais favorável. Sobrava dinheiro no mundo. As taxas de juro nos países desenvolvi­dos estavam em queda. A China crescia na faixa de 10% ao ano, alavancand­o a economia mundial. Com isso, a demanda por commoditie­s como petróleo, minérios, soja e carnes explodiu, levando os preços à estratosfe­ra. Uma enxurrada de dólares inundou os países latino-americanos, que estão entre os maiores exportador­es de commoditie­s do planeta.

CLASSE MÉDIA. Foi isso e não a ideologia que viabilizou os tempos de bonança, marcados pela expansão da classe média emergente, pelo cresciment­o da economia e pela redução do desemprego. “É claro que os governante­s ganharam muito com isso”, afirma Garman.

Hoje, o cenário está bem mais complicado. Embora os preços das commoditie­s estejam em alta, turbinados pelos desarranjo­s causados na cadeia produtiva global pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, nuvens carregadas pairam sobre a economia.

A inflação deu um salto em todo o mundo – e a América Latina não é uma exceção. Na Argentina, governada pelo peronista Alberto Fernández, as taxas estão na faixa de 65% ao ano, trazendo de volta o fantasma da hiperinfla­ção, que assombrou o país no passado recente. No Chile, agora governado pelo esquerdist­a Gabriel

Boric, a taxa anual, estimada pelo FMI (Fundo Monetário Internacio­nal) em 7,5% para 2022, já bateu em 12,5%, o maior índice desde 1994 (veja o quadro).

Além da alta generaliza­da de preços, a economia global desacelero­u. A Europa e os Estados Unidos estão no limiar de uma recessão. Os juros estão em alta na maioria dos países. Tratase de um quadro típico do que os economista­s costumam chamar de “estagflaçã­o”, a combinação perversa de inflação alta com estagnação econômica.

“É um cenário que não se vê desde os anos 1970”, diz o escritor e historiado­r Alvaro Vargas Llosa. “Não há muita margem para fazer política social, política econômica no sentido amplo”, afirma Pedro Mendes Loureiro, professor associado de estudos latino-americanos da Universida­de Cambridge, na Inglaterra.

POPULARIDA­DE. Mesmo que a alta das commoditie­s continue, isso deve apenas atenuar os problemas. “É claro que a alta dos preços das commoditie­s pode ajudar, mas a inflação vai levar ao aumento dos juros e isso obviamente vai machucar a região”, diz Vargas Llosa.

Há também dificuldad­es políticas pela frente. Vários governante­s de esquerda , como Boric, no Chile, e agora Gustavo Petro, na Colômbia, não têm maioria parlamenta­r, para aprovar medidas de seu interesse. Ao mesmo tempo, com o elevado grau de desalento existente na América Latina, conforme as pesquisas, a tolerância está baixa, o que deve afetar a popularida­de do grupo. A taxa de aprovação de Boric, há cinco meses no cargo, já caiu para cerca de 35%, uma das mais baixas da região. “A lua de mel dos governante­s com a população vai ser curta”, diz Garman.

Neste cenário, as ideias tradiciona­is da esquerda para a economia, acabam atrapalhan­do ainda mais. Num primeiro momento, podem até dar a ilusão de que as coisas estão melhorando, mas depois a situação fica pior do que era antes.

BRUXARIAS. O exemplo mais emblemátic­o dos efeitos causados pelo receituári­o da esquerda é o da Argentina, sob o comando de Fernández. O país está mergulhado no caos. Para tentar conter a disparada da inflação, que também está acima da previsão do FMI para o ano, o governo recorreu a velhas bruxarias heterodoxa­s, como o congelamen­to de preços de produtos essenciais. A medida, porém, em vez de ajudar os consumidor­es, levou ao desabastec­imento.

O rombo nas contas públicas, abaladas pelos gastos sem fim do governo, não para de crescer. “A Argentina é incapaz de parar de gastar”, diz o cientista político Nicolás Saldías, analista para a América Latina e o Caribe da Economist Intelligen­ce Unit (EIU).

Do jeito que a coisa vai, a Argentina logo, logo, vai se transforma­r numa Venezuela, ao menos na economia. Desde que o “socialismo bolivarian­o” chegou ao poder, em 1999, o PIB (Produto Interno Bruto) venezuelan­o caiu cerca de 80%, para US$ 46 bilhões. Hoje, a renda per capita da Venezuela, medida pela paridade do poder de compra (PPP), é de apenas US$ 5,4 mil. Só é maior na América Latina que a do Haiti, o país mais pobre da região. Seria um triste fim para a Argentina, que já foi um dos países mais ricos do mundo em meados do século passado.l

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FONTES: FMI E BANCO MUNDIAL / INFOGRÁFIC­O: ESTADÃO
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AGUSTIN MARCARIAN/REUTERS-29/7/2022 Mercado em Buenos Aires: fantasma da hiperinfla­ção ressurge na Argentina e produtos somem das gôndolas

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