Com ‘estagflação’ no radar, ‘lua de mel’ da esquerda deve durar pouco
Incertezas em relação à economia global reduzem espaço para cumprir promessas de campanha e já afetam popularidade de governantes
Com a ascensão em série de líderes de esquerda na América Latina, um sentimento de euforia tomou conta de políticos, intelectuais e militantes do grupo espalhados pela região e pelo mundo.
Não apenas pelas derrotas impostas às forças de direita e de centro-direita que estavam no poder em vários países, como Colômbia, Chile, Peru, Bolívia e Honduras. Mas pela expectativa de que um novo tempo, supostamente mais favorável, estaria se anunciando.
Na miragem da turma, os mandatários de esquerda conseguirão tirar a economia regional do marasmo e reduzir a desigualdade e a pobreza. No limite, acredita-se que os “ungidos” conseguirão promover o desenvolvimento econômico em ritmo chinês e garantir uma qualidade de vida sueca aos cidadãos.
Aqui no Brasil, onde a esquerda permaneceu no poder sob o comando do PT por quase 14 anos, entre 2003 e 2016, a esperança do pessoal é de que, nas eleições de outubro, com uma eventual vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, será possível reviver os “anos dourados” que ele teria proporcionado aos brasileiros em seus dois mandatos (2003-2010).
BATE-ESTACA. A realidade, porém, impõe outra narrativa, que contrasta com a que prospera no imaginário da esquerda latino-americana e se propaga por aí em ritmo de bate-estaca. No mundo real, nem o passado da esquerda foi róseo como eles dizem nem o presente sugere que o futuro, será.
“Os fatores que estão levando a esquerda a ganhar as eleições são os mesmos que vão dificultar a capacidade de governar, restringindo o que eles podem entregar”, diz o cientista político Christopher Garman, diretorexecutivo para as Américas da Eurasia, uma consultoria internacional especializada em avaliação de riscos.
No início dos anos 2000, a situação era muito mais favorável. Sobrava dinheiro no mundo. As taxas de juro nos países desenvolvidos estavam em queda. A China crescia na faixa de 10% ao ano, alavancando a economia mundial. Com isso, a demanda por commodities como petróleo, minérios, soja e carnes explodiu, levando os preços à estratosfera. Uma enxurrada de dólares inundou os países latino-americanos, que estão entre os maiores exportadores de commodities do planeta.
CLASSE MÉDIA. Foi isso e não a ideologia que viabilizou os tempos de bonança, marcados pela expansão da classe média emergente, pelo crescimento da economia e pela redução do desemprego. “É claro que os governantes ganharam muito com isso”, afirma Garman.
Hoje, o cenário está bem mais complicado. Embora os preços das commodities estejam em alta, turbinados pelos desarranjos causados na cadeia produtiva global pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, nuvens carregadas pairam sobre a economia.
A inflação deu um salto em todo o mundo – e a América Latina não é uma exceção. Na Argentina, governada pelo peronista Alberto Fernández, as taxas estão na faixa de 65% ao ano, trazendo de volta o fantasma da hiperinflação, que assombrou o país no passado recente. No Chile, agora governado pelo esquerdista Gabriel
Boric, a taxa anual, estimada pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) em 7,5% para 2022, já bateu em 12,5%, o maior índice desde 1994 (veja o quadro).
Além da alta generalizada de preços, a economia global desacelerou. A Europa e os Estados Unidos estão no limiar de uma recessão. Os juros estão em alta na maioria dos países. Tratase de um quadro típico do que os economistas costumam chamar de “estagflação”, a combinação perversa de inflação alta com estagnação econômica.
“É um cenário que não se vê desde os anos 1970”, diz o escritor e historiador Alvaro Vargas Llosa. “Não há muita margem para fazer política social, política econômica no sentido amplo”, afirma Pedro Mendes Loureiro, professor associado de estudos latino-americanos da Universidade Cambridge, na Inglaterra.
POPULARIDADE. Mesmo que a alta das commodities continue, isso deve apenas atenuar os problemas. “É claro que a alta dos preços das commodities pode ajudar, mas a inflação vai levar ao aumento dos juros e isso obviamente vai machucar a região”, diz Vargas Llosa.
Há também dificuldades políticas pela frente. Vários governantes de esquerda , como Boric, no Chile, e agora Gustavo Petro, na Colômbia, não têm maioria parlamentar, para aprovar medidas de seu interesse. Ao mesmo tempo, com o elevado grau de desalento existente na América Latina, conforme as pesquisas, a tolerância está baixa, o que deve afetar a popularidade do grupo. A taxa de aprovação de Boric, há cinco meses no cargo, já caiu para cerca de 35%, uma das mais baixas da região. “A lua de mel dos governantes com a população vai ser curta”, diz Garman.
Neste cenário, as ideias tradicionais da esquerda para a economia, acabam atrapalhando ainda mais. Num primeiro momento, podem até dar a ilusão de que as coisas estão melhorando, mas depois a situação fica pior do que era antes.
BRUXARIAS. O exemplo mais emblemático dos efeitos causados pelo receituário da esquerda é o da Argentina, sob o comando de Fernández. O país está mergulhado no caos. Para tentar conter a disparada da inflação, que também está acima da previsão do FMI para o ano, o governo recorreu a velhas bruxarias heterodoxas, como o congelamento de preços de produtos essenciais. A medida, porém, em vez de ajudar os consumidores, levou ao desabastecimento.
O rombo nas contas públicas, abaladas pelos gastos sem fim do governo, não para de crescer. “A Argentina é incapaz de parar de gastar”, diz o cientista político Nicolás Saldías, analista para a América Latina e o Caribe da Economist Intelligence Unit (EIU).
Do jeito que a coisa vai, a Argentina logo, logo, vai se transformar numa Venezuela, ao menos na economia. Desde que o “socialismo bolivariano” chegou ao poder, em 1999, o PIB (Produto Interno Bruto) venezuelano caiu cerca de 80%, para US$ 46 bilhões. Hoje, a renda per capita da Venezuela, medida pela paridade do poder de compra (PPP), é de apenas US$ 5,4 mil. Só é maior na América Latina que a do Haiti, o país mais pobre da região. Seria um triste fim para a Argentina, que já foi um dos países mais ricos do mundo em meados do século passado.l