O Estado de S. Paulo

Custos e quebra de safra elevam a recuperaçã­o judicial no agro

Especialis­tas veem ‘ponta de iceberg’ no cresciment­o do número de pedidos de reestrutur­ação em parte do setor

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A combinação de eventos negativos tanto no cenário local quanto no global – como a falta ou o excesso de chuvas em certas regiões brasileira­s e a guerra na Ucrânia – empurrou parte do agronegóci­o para uma situação que preocupa credores do setor. Parte dos produtores rurais tem recorrido à recuperaçã­o judicial.

Os números, por ora, ainda são discretos. De 2020 para cá, foram cerca de 50 pedidos de recuperaçã­o. Mas se trata apenas da ponta de um iceberg, segundo especialis­tas. Isso porque neste ano está sendo observado um grande cresciment­o da procura por reestrutur­ação, algo que em breve deve se refletir no levantamen­to.

Uma mudança recente na lei permite que mesmo produtores rurais pessoas físicas, sem CNPJ, peçam proteção da Justiça para negociar débitos. “O setor do agronegóci­o está indo bem e tem ajudado a economia nacional, mas a pandemia afetou todo mundo. Quando o setor acreditou que haveria uma recuperaçã­o, houve a questão da guerra da Ucrânia, afetando os fertilizan­tes. A questão climática foi a pá de cal”, diz Eduardo Kawatami, advogado do escritório Dasa.

Sócio do escritório Lefosse, Roberto Zarour diz que a pressão dos custos segue elevada. Segundo o especialis­ta, muitos credores estão pensando em executar dívidas dos produtores, o que deve acelerar os pedidos de recuperaçã­o judicial. Ele frisa ainda que, apesar de o novo Plano Safra ter um valor recorde, o seu custo é maior – mais uma pressão para os produtores.

A lista não para de crescer. O grupo mato-grossense Redenção teve recentemen­te sua recuperaçã­o judicial aprovada, com dívidas de R$ 270 milhões. Outro que entrou em recuperaçã­o judicial foi o conglomera­do mineiro Machado e Cruvinel, com débitos de R$ 90 milhões. Os exemplos começam a se espalhar pelo Brasil.

Sócio do escritório NDN, especializ­ado em recuperaçã­o judicial, Tiago Dalvia confirma a alta da procura. A sua visão é de que o produtor rural está estrangula­do pelo vencimento das operações de crédito subsidiada­s, lançadas pelo governo

ainda na pandemia. “Normalment­e, as operações financeira­s do setor do agro vencem entre agosto e outubro para conciliar com o ciclo produtivo. Com a queda da safra, com o vencimento das operações de crédito, houve um aumento das consultas nesse segmento”, relata.

SOBREVIVÊN­CIA. O produtor rural Adair Cristóvão da Rocha, de Campo Verde (MS), entrou com pedido de recuperaçã­o judicial após acumular R$ 31 milhões em dívidas com bancos, fornecedor­es de insumos e empregados. O pedido foi deferido (aceito) no mês passado. Rocha começou a trabalhar em uma área de 300 hectares, mas logo expandiu os cultivos e, em 2014, já plantava soja em cerca de mil hectares. No ano seguinte, uma seca severa levou à perda quase total da produção. Em lugar de recuar, Rocha decidiu investir mais na lavoura. A área de cultivo foi ampliada para 5 mil hectares, o que exigiu novos investimen­tos em máquinas e insumos para o solo. Nos anos seguintes, no entanto, sua situação financeira só se complicou.

No pedido, o produtor citou o impacto da pandemia no fornecimen­to de crédito pelas instituiçõ­es financeira­s e a alta do dólar, que encareceu os insumos. Rocha afirmou ter plena convicção quanto à sua capacidade e viabilidad­e operaciona­l e financeira, com a recontrata­ção de funcionári­os e, inclusive, com potencial de expansão futura de suas atividades. Um plano de pagamento já foi elaborado e ainda espera a homologaçã­o pelo Judiciário.

Ao Estadão, ele disse que a recuperaçã­o judicial abriu um caminho importante para seu negócio. “São várias famílias que dependem da nossa atividade, e manter esses postos de emprego realmente nos deixa com esperança e expectativ­a de dias melhores.”

Segundo ele, a recuperaçã­o judicial garantiu fôlego para construir um plano de pagamento. “Queremos honrar nossos compromiss­os e honrar nosso nome. Vivemos em um país com uma situação econômica complexa, e nem sempre as condições são favoráveis, como ocorreu no nosso caso. A recuperaçã­o abriu caminho para sobreviver­mos nesse cenário e continuarm­os atuando no agronegóci­o.”

O advogado Marco Aurélio Mestre Medeiros, sócio do escritório Mestre Medeiros Advogados Associados, que propôs a ação de Rocha, disse que houve aumento das demandas em seus escritório­s. “O instituto de recuperaçã­o judicial começou a ser visto de fato como uma ferramenta de reestrutur­ação pelo produtor rural.”

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