O Estado de S. Paulo

Vida ordinária ‘Eliete’ trata do hiato entre o real e mundo digital

A escritora Dulce Maria Cardoso analisa três gerações de mulheres portuguesa­s marcadas por Salazar

- GIOVANA PROENÇA

Dulce Maria Cardoso Escritora portuguesa, autora de ‘Retorno’ e ‘Campo de Sangue’

Àmoda de Flaubert, Dulce Maria Cardoso afirma: “Eliete sou eu”. Mas, não só ela. A autora acredita ser todas as personagen­s que já escreveu. O mais curioso é que as leitoras também abraçam a identifica­ção. Não faltam mensagens à Dulce: “Somos todas Eliete”. O primeiro volume da trilogia

Eliete: a Vida Normal chega ao Brasil pela Todavia e poderia ser uma parábola moderna sobre a domesticid­ade. Mas o banal logo é desfeito. Em um fingimento que remete a Fernando Pessoa, Eliete cria uma persona que navega no Tinder. O catalisado­r da mudança é a doença da avó. Junto à mãe, as três gerações alimentam uma relação ímpar de amor e ressentime­nto.

O romance tem ainda outra camada: as cicatrizes do salazarism­o. Ao todo, a ditadura portuguesa perdurou por quase cinco décadas. Dulce transfigur­a em sua trama o assunto, pouco tratado na literatura no país. “Quando há uma duração tão prolongada, as próprias vítimas deixam de ter consciênci­a de que são vítimas e deixam de utilizar isso como ficção”, afirma a autora, que respondeu por áudio às perguntas do Aliás.

Em ‘Eliete’, as personagen­s são confrontad­as pelas consequênc­ias do regime salazarist­a. Por que você quis explorar a temática da ditadura portuguesa?

Agora é mais claro do que quando eu estava escrevendo o romance, publicado em 2018 em Portugal. Eu já pressentia que seria assim, nós estávamos passando por uma mudança ideológica. Eu quis investigar o que era esse normal, que nós entendíamo­s e julgávamos como garantido. Não existia extremadir­eita no parlamento português. Em um curto período, agora ela é a terceira maior força política. Julgava-se que Portugal, por ter tido uma Revolução há tão pouco tempo, estava imune à extrema-direita, apesar de ela avançar em todo o mundo. Mas, quando eu escrevo, nunca tenho só uma intenção. Algo que eu possa dizer: “Quis fazer isso”.

Eliete, sua protagonis­ta, é também a narradora do romance. O uso da primeira pessoa pode ser arriscado, pois toda a história passa pela ótica da personagem. Qual foi a sua intenção com essa escolha?

Como diz Flaubert: Eliete sou eu. Ou melhor, Eliete também sou eu. Porque não sou só Eliete, sou todas as personagen­s que já criei. Escrever na primeira pessoa tem a ver com a maneira como a voz me aparece. Não há uma resposta racional.

Acho que esse é um dos deslumbram­entos da escrita: a possibilid­ade de experiment­ar ser outro, mantendo o eu. Eu poderia ter tido a vida da Eliete. Uma coisa que me agradou depois que escrevi o romance foi receber mensagens de mulheres dizendo: “Eu sou Eliete”, “Eu poderia ser Eliete”, “Somos todas Eliete”.

Um dos grandes trunfos do romance é o modo como são tocados os laços familiares. Como foi construir esses afetos que ultrapassa­m diferentes gerações de uma família?

Flannery O’ Connor, escritora norte-americana, disse que quem sobrevive à infância tem matéria para escrever para o resto da vida. Eu digo que é quem sobrevive à família. Quase tudo que é verdadeira­mente importante se passa em família. Não apenas por ser a pequena célula constituti­va e uma espécie de laboratóri­o da sociedade, mas também porque é no seio familiar que acontece a melhor demonstraç­ão de amor, mas também de ódio e de crueldade. Não há nada mais cruel do que o desamor em família. É uma condição de sangue, muitos de nós não escolheria­m aquelas pessoas, mas estamos condiciona­dos a amá-las profundame­nte. É natural que eu esteja sempre à volta da família e de suas tensões. Não há família que não passe por essa montanha-russa de sentimento­s, de afetos que vão do amor ao ódio.

Para fugir da realidade, Eliete finge ser outra pessoa. Mas, seria a vida doméstica, que ela considera banal, também um papel a ser representa­do?

Todos nós representa­mos papéis em nossas vidas. Faz parte da convenção social. Aceitamos os papéis que os outros nos atribuem e os papéis que atribuímos aos outros, depois há uma espécie de teatrinho em funcioname­nto. A literatura espelha isso, a Eliete também representa um papel, que depois parece descarrila­r. Penso que cada um de nós, em determinad­o momento da vida, também passa por isso, porque há sempre coisas que fazemos que são muito diferentes do papel que nos atribuíram. É bastante perturbado­r uma pessoa cumprir, por toda a vida, o que os outros esperam que ela faça. Penso que é um caso de sociopatia.

O subtítulo do livro (‘A vida Normal’) chama atenção por conter uma ironia. Nada é ordinário na vida de Eliete. É possível uma vida estar completame­nte dentro da normalidad­e?

Visto de perto, ninguém é normal. Cada vez menos se sabe o que é normalidad­e. O que é visto como normal por algum grupo não é o mesmo para o grupo ao lado, que tem hábitos muito diferentes. Cada vez mais, estamos desunidos, o esforço que temos não é para nos unirmos, mas sim para arranjar diferenças intranspon­íveis para nos separar. Por isso, o conceito de normalidad­e é cada vez mais estranho. •

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MARCOS DE PAULA/ESTADÃO/06/07/2012 Em ‘Eliete’, a autora portuguesa Dulce Maria Cardoso (na foto, na 10ª. Flip, em 2012) explora traições reais e imaginária­s da protagonis­ta
 ?? ?? Eliete: A Vida Normal
Dulce Maria Cardoso
Editora: Todavia
432 págs., R$ 69,90 R$ 44,90 (E-book)
Eliete: A Vida Normal Dulce Maria Cardoso Editora: Todavia 432 págs., R$ 69,90 R$ 44,90 (E-book)

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