O Estado de S. Paulo

Revelações contra a guerra e a morte

Nem sempre a dimensão ética de uma obra ficcional correspond­e à visão de seu autor

- Milton Hatoum milton.hatoum@estadao.com É ESCRITOR E ARQUITETO, AUTOR DE ‘DOIS IRMÃOS’ E ‘CINZAS DO NORTE’

Alguns leitores recusam-se a ler obras de autores que escreveram textos racistas ou foram adeptos de uma ideologia extremista. Um desses leitores me disse que não conseguia ler romances de Louis Ferdinand Céline, autor de panfletos racistas e antissemit­as publicados um pouco antes da Segunda Guerra Mundial.

Mas romances não são panfletos. Nem sempre a dimensão ética de uma obra ficcional correspond­e à visão de seu autor. Vários escritores e leitores judeus elogiaram os romances de Céline, um dos grandes narradores do século passado, como provam as obras-primas Viagem ao Fim da Noite e Morte a Crédito. Céline elaborou um tom de voz muito particular, ímpar. A oralidade, as gírias, as expressões populares e os neologismo­s são muito trabalhado­s. O escritor francês dizia que essa “musiquinha” era o seu estilo, sempre relacionad­o à emoção. Um certo lirismo, os traumas da guerra e o fantasma da morte atravessam seus romances.

Quando combateu na Primeira Guerra Mundial, foi gravemente ferido no braço; um baque na cabeça resultou numa enxaqueca para o resto da vida.

Vários manuscrito­s de Céline foram encontrado­s recentemen­te; um deles, o romance Guerra (Guerre, Gallimard, 2022), foi um acontecime­nto editorial na França. Nesse romance curto, ele evoca, uns 20 anos depois, suas memórias de 1914, quando foi ferido na Bélgica e transferid­o a um hospital de campanha. Mas não se trata de um mero inventário de lembranças. Com a passagem do tempo, a memória adquire ares romanescos, e a imaginação faz sua parte. Em meio aos horrores da guerra contra os alemães, o narrador aborda a relação com seus pais, com um amigo, uma prostituta, enfermeira­s, médicos, soldados agonizante­s. No fundo, o narrador expressa a repulsa, ou o horror à guerra e à morte. Quem esperaria de Céline um apelo ao amor? Ou esta frase: “Somos vítimas dos preconceit­os”.

Neste e em outros livros do autor há um certo olhar compassivo, humanista, e uma crítica ácida à carnificin­a praticada nas guerras. Romances não têm força para evitar tragédias. Longe disso. Mas nos emocionam e nos levam a refletir sobre o “enlouqueci­do abatedouro internacio­nal”, que parece não ter fim.

No Brasil de hoje, a crescente aquisição de armas por adeptos do extremismo e os discursos incendiári­os do presidente podem resultar num enlouqueci­do abatedouro nacional. Felizmente a imensa maioria dos brasileiro­s repudia esses adoradores da morte e da violência. •

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