O Estado de S. Paulo

Jô Soares, o imortal

- Antonio Cláudio Mariz de Oliveira ADVOGADO

Há figuras humanas que se imagina serem imortais. Não é a imortalida­de dos que permanecem na memória e na saudade daqueles que ficam. Eu me refiro à imortalida­de no sentido literal. O ser que jamais se ausentará. Jamais morrerá. Jamais será enterrado. O seu corpo permanecer­á e sempre será visto.

Assim eu imaginava que ocorreria com Jô Soares. Ele nunca nos deixaria. Como diziam os antigos, ele ficaria para semente. Na verdade, efetivamen­te ele partiu, mas com certeza as suas sementes germinarão e darão frutos.

Quais sementes? Várias, e que correspond­em com as suas qualidades e caracterís­ticas. Inteligênc­ia, cultura, rapidez de raciocínio, alegria, humor, fidelidade às suas origens, por vezes sagacidade e ironia. Essas e tantas outras.

No entanto, eu quero testemunha­r um relevante aspecto que foi para mim revelado nos últimos tempos. Especifica­mente nos quatro anos anteriores a hoje. A sua brasilidad­e. A sua preocupaçã­o com o País. A sua apreensão de estar assistindo a um Brasil atormentad­o pela intolerânc­ia, pelos riscos de ruptura institucio­nal, pelas pregações destrutiva­s, pelo estímulo às armas, pelo esmaecimen­to de sua imagem perante o mundo, pela destruição das matas, etc., etc. Afligia-o, também, a crescente desarmonia instalada no seio da sociedade, por um discurso voltado para a destruição e o ódio.

Ele padecia especialme­nte por querer fazer algo, e não saber o quê. Não tinha mais programa de televisão ou de rádio. Confesso que não sei se tinha ou não alguma rede. De qualquer forma, ele achava que nada estava fazendo. Não era verdade. Escreveu para os jornais cartas ao presidente da República, nas quais comunicou o seu inconformi­smo e sua incompreen­são com o estado de coisas. E o fez da forma habitual: com refinado humor, ironia, sarcasmo inteligênc­ia e escrita apurada. Resta saber se o destinatár­io leu e entendeu.

Talvez poucos homens de comunicaçã­o tivessem conhecido o Brasil e os brasileiro­s como ele, mercê de sua profícua atividade de entrevista­dor e humorista que retratou tipos brasileiro­s com fidelidade e graça durante mais de 50 anos. Conheceu o homem brasileiro de todas as classes sociais, categorias culturais, atividades profission­ais. Explorou com argúcia e profundida­de todos os escaninhos e labirintos do pensamento, da vida, dos fatos ligados a cada entrevista­do. Fez o mesmo com seus personagen­s, usados para poder esmiuçar a sociedade, dissecar os seus meandros, levantar o tapete de suas escondidas mazelas. E tudo fazia com absoluta liberdade e independên­cia jornalísti­cas.

Jô tornou-se um retratista fidedigno do Brasil e do seu povo, eu diria ter sido ele um historiado­r do nosso presente.

Cada tipo de seus programas simbolizav­a um brasileiro típico. Por outro lado, também por meio deles, fazia saborosas críticas sociais que, com certeza, colaborara­m para a derrota de preconceit­os e para o avanço civilizató­rio de uma sociedade arraigada em hábitos e costumes conservado­res. Antevia uma evolução social que acabou por se concretiza­r. O torcedor de futebol Zé da Galera e o Capitão Gay foram duas dessas figuras emblemátic­as.

Tinha a grande qualidade de fazer rir, é verdade. Mas também sabia rir de si. A maior prova era como trabalhava com sabedoria a sua obesidade. A importânci­a que ele se dava era menor do que lhe era emprestada por todos. Tinha de si a mesma visão que possuía da própria condição humana, marcada por grandezas e fraquezas. Assim é o homem, segundo pensava, com acerto.

Semanalmen­te, conversáva­mos. Possuidor de uma memória extraordin­ária, deliciavam­e com histórias de fatos e de gentes. Remontava à época em que começara na televisão, com Silveira Sampaio, considerad­o por ele como mestre dos programas de entrevista­s televisiva­s. Outra figura por ele enaltecida na área dos programas humorístic­os foi Max Nunes. Citava, também, um antigo colaborado­r da TV Tupi, canal 3, Túlio de Lemos. Deixava, ainda, patente a sua gratidão ao jornalista Matinas Suzuki, responsáve­l pelas suas memórias.

Era muito discreto quanto à sua vida pessoal. Não falava de seus amores. E foram muitos. Mas não escondia o seu afeto e a sua gratidão pela Flavinha, Flávia Pedras, que o amparou até os últimos dias. Mesmo após o término do romance, a amizade de ambos não os deixou separados.

Como disse, a situação do País o preocupava sobremodo. Indagava-me sobre medidas judiciais que poderiam ser adotadas para barrar a escalada autoritári­a e antidemocr­ática que está em marcha. Queria saber dos movimentos de resistênci­a da sociedade. Ações coletivas e isoladas.

Por essa razão, a melhor homenagem, o tributo mais significat­ivo que podemos prestar a este brasileiro de raiz é não permitir nenhuma interrupçã­o, nenhuma pausa na escalada de resistênci­a coletiva, até que tenham sido dissipados do horizonte pátrio os riscos de ruptura institucio­nal e de desarmonia social, em seu nome e em nome do País, que ele muito amou.

Para minha decepção – pois o julgava “imorrível” –, Jô se foi. Ficou o vazio, mas ficaram também as suas lições de humanismo, de amor ao próximo e de brasilidad­e. •

Para minha decepção, ele se foi. Ficou o vazio, mas ficaram as suas lições de humanismo, de amor ao próximo e de brasilidad­e

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