O Estado de S. Paulo

Púlpito não é palanque eleitoral

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O Estado brasileiro é laico. A religião não é instrument­o para captura de voto, como tenta fazer o bolsonaris­mo. A Lei das Eleições proíbe o proselitis­mo eleitoral em templo religioso

Dentre outros muitos avanços institucio­nais, a proclamaçã­o da República assegurou a separação entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro, que passou a não ter uma religião oficial. A laicidade estatal é um tema especialme­nte caro às garantias e liberdades fundamenta­is. Ninguém deve ser coagido a ter uma religião, como também ninguém deve ser impedido de exercê-la. No Estado Democrátic­o de Direito, o poder público não tem competênci­a sobre questões religiosas, e o exercício da cidadania não é limitado ou potenciali­zado em razão da filiação ou não a alguma denominaçã­o religiosa.

Ao tratar da organizaçã­o do Estado, a Constituiç­ão de 1988 previu três vedações fundamenta­is, sendo a primeira uma proteção da laicidade estatal e da liberdade religiosa. “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelece­r cultos religiosos ou igrejas, subvencion­á-los, embaraçar-lhes o funcioname­nto ou manter com eles ou seus representa­ntes relações de dependênci­a ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboraçã­o de interesse público”, dispõe o art. 19, I do texto constituci­onal.

A liberdade religiosa é uma garantia fundamenta­l. Em deferência a essa liberdade, as igrejas recebem um tratamento jurídico diferencia­do. Por exemplo, a Constituiç­ão de 1988 veda a criação de impostos sobre os templos, com o objetivo de assegurar e proteger o livre exercício da prática religiosa.

No entanto, nos últimos anos, temse observado um uso abusivo do estatuto especial das igrejas para fazer proselitis­mo eleitoral, o que, além de constituir uma manipulaçã­o de liberdades fundamenta­is, é vedado pela legislação eleitoral. A Lei das Eleições (Lei 9.504/97) proíbe a veiculação de propaganda eleitoral em templos religiosos. Ainda que o fenômeno seja anterior e não se restrinja ao bolsonaris­mo, o uso do púlpito para fins eleitorais pela família Bolsonaro é especialme­nte escancarad­o. No domingo passado, a primeira-dama Michelle Bolsonaro mostrou que, na tentativa de angariar votos, não há limites para a confusão entre política e religião. Em culto evangélico na Igreja Batista Lagoinha em Belo Horizonte, Michelle Bolsonaro exaltou seu marido como enviado de Deus na guerra do bem contra o mal.

A proibição de proselitis­mo eleitoral em templos religiosos é expressão de um princípio fundamenta­l do regime democrátic­o: a igualdade de condições entre os candidatos. O regime jurídico especial das igrejas, que existe em função da liberdade religiosa, não pode ser usado para favorecer o candidato político de uma liderança religiosa. O púlpito não é palanque eleitoral.

Não há como tapar o sol com peneira. As lideranças religiosas exercem uma autoridade sobre seus fiéis, o que pode ter consequênc­ias sobre a liberdade política. Por isso, a Lei 9.504/97 veda o proselitis­mo eleitoral em templos religiosos. Como lembrou o ministro Edson Fachin, em julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2020, “a imposição de limites às atividades eclesiásti­cas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimida­de do processo eleitoral, dada a ascendênci­a incorporad­a pelos expoentes das igrejas em setores específico­s da comunidade”. Por isso, segue o ministro, “dita interpreta­ção finca pé na necessidad­e de impedir que qualquer força política possa coagir moral ou espiritual­mente os cidadãos, em ordem a garantir a plena liberdade de consciênci­a dos protagonis­tas do pleito”.

A liberdade política é também uma garantia fundamenta­l. Por isso, entre outras restrições, o Código Eleitoral proíbe propaganda eleitoral destinada “a criar, artificial­mente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais”. Prevê ainda que “a interferên­cia do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos”.

Na República, todos estão abaixo da lei. Todos os candidatos, também Jair Bolsonaro, devem respeitar a Constituiç­ão e a legislação eleitoral. Religião não é instrument­o para captura de voto.•

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