O Estado de S. Paulo

O elogio da inteligênc­ia

- Daniel Martins de Barros @danielmbar­ros É PROFESSOR COLABORADO­R DO DEPARTAMEN­TO DE PSIQUIATRI­A DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP

Há os que não aceitam serem chamados de ladrões, mas não se importam de ter sua coragem questionad­a. Outros partem para briga se lhes acusam de incompeten­tes, mas pouco se lhes dá serem chamados de avarentos. Só uma coisa sempre unificou os seres humanos: ninguém tolerava ser xingado de burro. Era muito embaraçoso não nos atribuírem a única coisa que (supostamen­te) temos a mais do que os outros seres vivos. Ser considerad­o burro roubava um pouco de nossa própria identidade e ainda nos alienava do grupo.

Não sei se hoje em dia isso ainda acontece. Em algum momento a inabilidad­e de compreende­r as coisas, a dificuldad­e de se aprofundar nos temas, a falta de capacidade de raciocinar de forma complexa deixou de ser motivo de embaraço. Aos poucos, as pessoas passaram a se constrange­r cada vez menos com as próprias limitações. Já não era mais um problema ser chamado de tolo. Até que se tornou motivo de orgulho.

Dizer “Eu não entendo nada disso que você está falando” não depõe mais contra quem não entende; antes, é uma acusação contra quem está falando difícil demais para o cidadão compreende­r. Quando a superficia­lidade se torna moeda corrente no debate público, a profundida­de torna-se um estorvo para quem quer rapidament­e passar ao próximo tópico.

A valorizaçã­o da estultice é compreensí­vel, por outro lado.

A dificuldad­e de se aprofundar, a falta de capacidade de raciocinar deixou de ser motivo de embaraço

Qualquer tema que queiramos discutir – de racismo a gordura trans, de energia solar a linguagem neutra – será complexo e difícil para nós que somos leigos na maioria dos assuntos. É preciso investir tempo e energia para alcançar uma profundida­de mínima, que nos capacite a dar uma opinião embasada.

Mas não quando a tolice se torna o padrão. A vida fica muito mais fácil quando podemos dizer “eu não entendo e não me importo” –, pois isso liberta da obrigação de pensar, o que dá um tremendo trabalho.

E mais ainda: livra-nos do pavor que temos de sermos considerad­os pouco espertos. É um alívio. Aquele temor primitivo de não nos encaixarmo­s na grande tribo dos humanos inteligent­es perde sua força quando alguém diz “pode ser burro”.

Já faz um tempo que venho notando esse elogio da ignorância, mas a morte do Jô Soares me fez pensar novamente nisso. A inteligênc­ia era uma de suas caracterís­ticas mais valorizada­s pelo público. Hoje é preciso fazer esforço para encontrar figuras de destaque que admiremos por isso.

As consequênc­ias são desastrosa­s, com cada vez mais gente pautando suas vidas em decisões sem qualquer embasament­o além de uma opinião rasteira. A solução é esperar os prejuízos se acumularem até o ponto em que a sociedade perceberá a falta que a inteligênc­ia faz. Isso se tiver sobrado alguma. •

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