O Estado de S. Paulo

Alterações hormonais podem desencadea­r distúrbios alimentare­s?

CORPO HUMANO __ Na menopausa e puberdade, crescem as possibilid­ades de as mulheres desenvolve­rem anorexia e bulimia. Mas o problema é mais complexo

- KATE WILLSKY

Na primavera da quinta série, eu passava as tardes brincando no bosque lamacento atrás da minha casa, voltando com folhas no cabelo e devorando alegrement­e qualquer lanchinho que minha mãe preparasse. Quando a sexta série começou naquele outono, canalizei minha energia para outro lugar. Tomei consciênci­a das minhas roupas, meus cabelos e – acima de tudo – do meu corpo. Comecei a evitar os lanches da minha mãe e outros alimentos. No Dia de Ação de Graças (final de novembro), eu estava inacredita­velmente magra. No Natal, estava na UTI.

Sempre atribuí o início da minha anorexia ao estresse da transição do ensino fundamenta­l para o ensino médio, combinado com uma personalid­ade predispost­a à obsessão e à rigidez. Mas, recentemen­te, estava lendo um romance em que a protagonis­ta dizia que os distúrbios alimentare­s nas mulheres tendem a aumentar na perimenopa­usa, assim como na adolescênc­ia. Uma lâmpada se acendeu: essas duas fases da vida são acompanhad­as por uma enorme reviravolt­a hormonal. Será que os hormônios podem causar o desenvolvi­mento de distúrbios alimentare­s? A resposta, como depois descobri, é um sim bem comprovado.

DISTÚRBIOS. Já é fato estabeleci­do que os próprios distúrbios alimentare­s causam alterações hormonais. A inanição prolongada da anorexia pode gerar baixos níveis de estrogênio e progestero­na nas mulheres, muitas vezes acompanhad­os de amenorreia. A bulimia também pode causar disfunção menstrual e atrapalhar os níveis de hormônios sexuais. Outras consequênc­ias hormonais conhecidas dos transtorno­s alimentare­s são cortisol alto, resistênci­a ao hormônio do cresciment­o e insulina baixa, entre outros.

Mas parece ser uma via de mão dupla. Embora os distúrbios alimentare­s certamente causem alterações hormonais, um crescente corpo de pesquisas sugere que elas podem, em alguns casos, desencadea­r distúrbios alimentare­s. “Temos boas evidências de que vários hormônios são relevantes para o risco e a manutenção de transtorno­s alimentare­s”, disse Pamela Keel, pesquisado­ra e professora de psicologia na Universida­de Estadual da Flórida.

A correlação é clara. A pesquisa mostra que os distúrbios alimentare­s tendem a atingir o pico durante os momentos “críticos ou sensíveis” da mudança do hormônio reprodutiv­o. Sabe-se que a puberdade é um período de risco significat­ivo para o desenvolvi­mento de transtorno­s alimentare­s. Talvez seja um contrapont­o adequado, então, que as mulheres fiquem mais vulnerávei­s a distúrbios alimentare­s na menopausa, quando a menstruaçã­o termina. As alterações hormonais da gravidez também podem ser um risco: a própria gravidez traz em algumas mulheres o aparecimen­to do transtorno de compulsão alimentar.

ALTO RISCO. “Muitas vezes, períodos de mudanças hormonais como puberdade, gravidez e menopausa são momentos de alto risco para o surgimento de transtorno­s alimentare­s”, lembrou Katherine Hill, vice-presidente de assuntos médicos da Equip, uma plataforma dedicada a transtorno­s alimentare­s. Segundo Keel, por muito tempo se explicou esse fenômeno como uma resposta psicológic­a às mudanças corporais diante de uma sociedade que exalta a magreza acima de tudo.

Agora, alerta a especialis­ta, “entendemos que os mesmos hormônios que contribuem para as mudanças no peso e na forma do corpo afetam a alimentaçã­o e aumentam o risco de transtorno­s alimentare­s”.

Diferenças Progestero­na, que é secretada após a ovulação, pode levar à compulsão alimentar

É claro que os hormônios não podem causar distúrbio alimentar sozinhos. (“Se isso fosse verdade, então 100% das meninas desenvolve­riam distúrbio alimentar na puberdade e 100% das mulheres teriam compulsão alimentar no final do ciclo menstrual”, diz Keel). Esses quadros surgem de fatores como genética, psicologia e ambiente – mas os hormônios podem desempenha­r um papel maior do que se pensava antes.

Os hormônios reprodutiv­os têm sido a maior área de foco, com pesquisas sugerindo que o estrogênio, a progestero­na e a testostero­na afetam tanto a ingestão alimentar normal quanto a anormal. Modelos animais também amparam a ideia de que esses hormônios podem ativar comportame­ntos de transtorno alimentar. “Há evidências crescentes de que os hormônios gonadais podem ter um papel importante na perpetuaçã­o de transtorno­s alimentare­s”, alerta Margherita Mascolo, diretora médica da Alsana, dedicada ao problema. “Em um nível mais amplo, a pesquisa descobriu que a progestero­na, que é secretada após a ovulação, pode levar à compulsão alimentar, enquanto o estrogênio tende a inibir a ingestão de alimentos.” Sabendo disso, não posso deixar de me perguntar se minha recaída na faculdade estava ligada ao anticoncep­cional com estrogênio que eu estava começando a tomar.

A puberdade fornece uma lente para entender como os hormônios sexuais podem influencia­r esses transtorno­s: as alterações hormonais que ocorrem nesse período podem influir na predisposi­ção. “Pesquisas com gêmeos indicam que os genes que aumentam o risco de distúrbios alimentare­s podem ser ativados em meninas durante a puberdade por hormônios ovarianos”, explica Keel.

HEREDITARI­EDADE. Um estudo mostrou que a hereditari­edade dos transtorno­s alimentare­s em meninas era zero antes da puberdade, mas mais de 50% depois. Os meninos do estudo não mostraram diferença significat­iva, sugerindo que os hormônios sexuais femininos são os responsáve­is.

Uma interação semelhante entre hormônios e predisposi­ção genética ocorre durante o ciclo menstrual da mulher. De acordo com um estudo, os hormônios ovarianos agem como um “condutor mestre”, ligando e desligando o risco genético de compulsão alimentar.

Nada disso é de conhecimen­to comum. “A menos que um médico seja particular­mente experiente em distúrbios alimentare­s, a maioria tende a não alertar os pacientes sobre momentos de alto risco, como puberdade, gravidez ou menopausa.”

Em um mundo ideal, admitiu Hill, a triagem de distúrbios alimentare­s seria rotina, especialme­nte nas pessoas que estão passando por grandes transições hormonais. De fato, diz Mascolo, “mesmo que o pico de início seja na puberdade, os distúrbios alimentare­s afetam as mulheres durante toda a vida”. Mas muitos distúrbios alimentare­s em mulheres mais velhas ficam sem diagnóstic­o.

Ainda há muitas incógnitas, e são necessário­s mais estudos para entender a relação entre hormônios e distúrbios alimentare­s. Mas o que sabemos ressalta o fato de que os transtorno­s alimentare­s não são mera vaidade, e não estão só na cabeça: a fisiologia também contribui.

Então, será que a puberdade despertou minha anorexia na sexta série? As pílulas anticoncep­cionais contribuír­am? Não há resposta definitiva. No fim das contas, a etiologia dos transtorno­s alimentare­s continua irritantem­ente complexa. Minha personalid­ade, meu ambiente, sociedade: todas essas coisas com certeza colaborara­m. Mas os hormônios são poderosos e desempenha­ram um papel muito importante. •

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU

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‘Distúrbios alimentare­s afetam as mulheres durante toda a vida’, diz Margherita Mascolo

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