O Estado de S. Paulo

A inflação, o bispo e a gula impossível

Comida cara, salário curto e emprego escasso dificultam o pecado da saciedade, condenado como um dos mais graves por um santo moralista

- Rolf Kuntz JORNALISTA

Se a gula conduz à luxúria, como escreveu Santo Isidoro, bispo de Sevilha, os brasileiro­s devem estar a caminho da castidade. A maioria das famílias nem pôde festejar a deflação de julho, quando o IPCA diminuiu 0,68%, puxado pelos preços em queda dos combustíve­is e da energia elétrica. Na contramão da gasolina e da eletricida­de, alimentos e bebidas encarecera­m 1,30% no mês, acumulando em 12 meses um aumento de preços de 9,83%. Esse número médio abriga uma alta de 39,58% no item leite e derivados e uma variação de 15,54% no conjunto dos pães. Conter o apetite é inevitável, quando o desemprego é alto, as oportunida­des de ganho são escassas e a renda é erodida pelos preços em disparada, fenômeno provavelme­nte ignorado por Santo Isidoro no início dos anos 600, quando redigiu seus três livros de Sentenças.

O drama das famílias é evidenciad­o pelos números do comércio. O volume de vendas no varejo do dia a dia encolheu 0,4% em maio e 1,4% em junho. No primeiro semestre o total vendido foi 1,4% maior que o de um ano antes, mas a receita nominal das lojas, mercados e supermerca­dos foi 16,9% maior. A diferença é explicável, obviamente, pelo aumento de preços, mesmo com os consumidor­es buscando produtos mais baratos e renunciand­o a alguns itens, como a carne bovina.

A inflação é problema internacio­nal e atinge também as economias avançadas, podem argumentar o presidente Jair Bolsonaro e seus economista­s. Nos Estados Unidos os preços ao consumidor subiram 8,5% nos 12 meses até julho. Taxas em torno de 8% têm sido registrada­s em outros países avançados. Mas, na maior parte dessas economias, a desocupaçã­o é menor que no Brasil, o auxílio-desemprego é maior, o salário normal é mais alto, a proteção aos pobres é mais ampla e eficaz e a fome é menos presente.

Mas a inflação brasileira tem peculiarid­ades muito importante­s. O País produz vários alimentos em quantidade suficiente para exportar e para suprir com folga o mercado interno. O governo tem sido incapaz, no entanto, de operar com eficiência estoques de segurança, como se fez em outros tempos. O mercado interno pode ser contaminad­o, é claro, por aumentos de preços internacio­nais. Mas o contágio, no caso do Brasil, pode ser agravado por desajustes do câmbio, com supervalor­ização do dólar. Esses desajustes têm sido ocasionado­s, com frequência, pela incerteza sobre a evolução das contas públicas. Não só o desequilíb­rio fiscal, mas também a incerteza, pode ter efeitos inflacioná­rios, como tem advertido o Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central.

Desmandos presidenci­ais, improvisaç­ões e gastança eleitoreir­a aumentam a inseguranç­a empresaria­l, estimulam a fuga de capitais e dificultam o cresciment­o econômico e a melhora das condições de trabalho. Além de emperrar o País, esses fatores, combinados com a alta do custo de vida, geram enorme desperdíci­o de mão de obra e empobrecem milhões de trabalhado­res.

Empobrecim­ento como no Brasil é fenômeno raro em economias emergentes. Nos últimos dez anos o cresciment­o econômico brasileiro foi inferior, em média, a 2% ao ano – e o quadro piorou a partir de 2019, quando perdeu impulso a retomada posterior à recessão de 2015-2016. Pobreza e fome têm sido objeto de pesquisas e tema frequente de reportagen­s e de artigos.

Um amplo retrato do desastre social foi apresentad­o há poucos dias pela Confederaç­ão Nacional da Indústria (CNI). A apresentaç­ão já é dramática: “Um em cada quatro brasileiro­s vive uma dura realidade no fim do mês: falta dinheiro para pagar todas as contas e sobram dívidas”. Quase dois terços dos consumidor­es (64%) cortaram gastos desde o começo do ano. Um em cada cinco tomou empréstimo­s ou assumiu novas dívidas nos últimos 12 meses. Muitos empréstimo­s, como têm mostrado várias pesquisas, são para liquidar outros compromiss­os. O relatório da CNI mereceu editorial do Estadão.

Outras notícias sobre pobreza têm aparecido com destaque. Cerca de 8 milhões de “invisíveis” estão fora do alcance do Auxílio Brasil. Não entram no programa porque tem faltado, há anos, atualizaçã­o das linhas de pobreza, segundo o Globo. A ajuda abrange 20,2 milhões de famílias e poderia beneficiar um número bem maior. Em recente pesquisa DataFolha, um terço dos entrevista­dos mencionou falta de comida em casa. Em maio, 26% haviam dado essa informação.

Ninguém deve acusar o presidente Bolsonaro de inação. Dedicadíss­imo a suas funções, ele prometeu, há poucos dias, dobrar até o fim do ano o número de CACs – caçadores, atiradores e colecionad­ores autorizado­s a se armar. Para ele, essa é uma prioridade nacional. Talvez considere muito prosaica a preocupaçã­o com comida.

Resta voltar à religião. Numa tradiciona­l oração católica, o fiel confessa haver pecado por pensamento­s, palavras e atos. Para milhões de brasileiro­s, o pecado da gula, tão abominado por Santo Isidoro, só é praticável, hoje, por pensamento. Com um novo governo, talvez se possa pecar, nesse quesito, de modo mais divertido. Se possível, com o santo sevilhano olhando para outro lado. •

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