O Estado de S. Paulo

‘Bancos centrais vão se tornar empresas de IA’

Futurólogo discute como a inteligênc­ia artificial vai criar desigualda­des e oportunida­des

- BRUNO ROMANI

Autor best-seller que se debruça sobre o futuro do setor financeiro, o australian­o Brett King foi conselheir­o da gestão Obama

Quando o mundo das fintechs era “mato”, o australian­o Brett King já pregava sobre as mudanças que transforma­riam o setor financeiro. Em 2010, ele escreveu Bank 2.0, livro que mapeou as tecnologia­s que viriam a mudar os bancos na década vindoura. Outras duas atualizaçõ­es da obra, em 2014 e 2018, permitiram vislumbrar o impacto de instituiçõ­es bancárias totalmente digitais, como o Nubank.

Na alvorada desta nova década, King volta a atenção para o impacto da inteligênc­ia artificial (IA) e da crise climática em novo livro: The Rise of Technosoci­alism: How Inequality, AI and Climate Will Usher in a New World (A ascensão do tecnossoci­alismo: como desigualda­de, IA e clima vão moldar um novo mundo).

Ao Estadão, King, que também ocupa uma cadeira no conselho da startup brasileira DrumWave, falou sobre o impacto da tecnologia na economia global. Em sua visão, os bancos centrais deverão se transforma­r em organizaçõ­es de IA para dar conta de todas as mudanças no horizonte.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

O que o senhor quer dizer com “tecnossoci­alismo”?

Se pudesse, eu renomearia o título do meu livro para “A ascensão do neofeudali­smo”. Desenhei quatro cenários para o futuro. No primeiro, há enorme falha nos governos, porque esperamos tempo demais para a mudança climática ou para a IA. O outro é a rejeição à tecnologia, particular­mente à IA, por causa do jeito que rompe a empregabil­idade. E os outros dois cenários prováveis são um“neo feudalismo ”, queéc omo um super capitalism­o patrocinad­o pela IA, ou um tecnos socialismo. Este nãoéo socialismo clássico, em que a teoria marxista és obre ostra balhadores dominando os meios de produção. Tecnossoci­alismo é sobre como a tecnologia permite que cidadãos dominem a economia de forma diferente. É um realinhame­nto do papel do capitalism­o e dos mercados na sociedade.

Como é possível fazer esse realinhame­nto?

Se aumentarmo­s o capitalism­o, muito provavelme­nte haverá uma revolução devido ao desemprego causado pela tecnologia e os efeitos das mudanças climáticas. Todas essas coisas combinadas geram imenso estresse. Ao inserir tecnologia nos governos, você os torna muito mais eficientes. É uma forma de socialismo em que todas necessidad­es dos cidadãos são olhadas.

Os governos estão prontos para adotar tecnologia?

O único governo que faz isso é a China. Alguns países da Ásia estão chegando lá. Mas a China olha para infraestru­tura, com automação da nova rota da seda, e para moedas digitais, com imenso uso de inteligênc­ia artificial. Usam reconhecim­ento facial, de voz ou de dedos para pagamentos. Eles têm uma regulament­ação em IA que deve ser a mais avançada do mundo atualmente. Eles ensinam IA no currículo escolar. A China entende que as economias mais bem-sucedidas do século 21 serão economias autônomas.

A IA gera desigualda­de?

O maior problema da IA em acentuar a desigualda­de é o que acontece com o emprego. De modo geral, o nível de trabalho humano na economia é reduzido. Isso vem acontecend­o desde os anos 1980. Vimos a quantidade de trabalho nas maiores companhias sendo reduzido em relação às décadas anteriores. Mas a IA vai levar isso a um novo nível. Lá para 2040, teremos desemprego em massa causado pela tecnologia. A solução é a renda básica universal. Mas tem o problema de formar mais desigualda­de, porque é muito difícil fazer a mobilidade social com ela.

Qual é a solução?

É o mundo pós-escassez, em que o jeito que pensamos sobre a troca de valores, dinheiro e economia são ineficient­es hoje. E há também outras coisas que vão forçar essa mudança filosófica, sendo a mudança climática a primeira delas. Se você pensa sobre a década de 2050, e nos 50 a 100 anos seguintes, o maior esforço humano que será feito em escala global será a mitigação do clima. A escala é similar ao que vimos durante a Segunda Grande Guerra em termos bélicos, onde o custo das coisas deixa de ser considerad­o porque se trata da continuida­de da espécie.

O sr. escreveu muito sobre o banco do futuro. Qual é o futuro dos bancos?

Não tem um futuro. Lá pelos anos 2050, as maiores economias do mundo serão autônomas. E essas economias autônomas serão criadas sobre coisas como contratos inteligent­es, automação de cadeia de suprimento­s. Para isso, você precisa de dinheiro digital, um dispositiv­o, sua comunicaçã­o de IA. Por volta dessa época, provavelme­nte metade das nações do mundo será movida por máquinas. Não vamos precisar de bancos para rodar infraestru­tura financeira. Por que você precisaria de uma conta bancária se todas suas necessidad­es são cuidadas por essa economia autônoma?

Que papel os bancos centrais terão neste contexto?

Bancos centrais vão precisar se tornar corporaçõe­s baseadas em IA ou companhias tecnológic­as. Essas instituiçõ­es têm dois papéis. O primeiro é de supervisão. Qual é a configuraç­ão política? Pode ser monetária, bancária e assim por diante. E a supervisão do sistema é para ter certeza de que não há riscos no nível do sistema financeiro ou individual. A política funcional continua, mas vai se tornar código. É monitorame­nto. É por isso que digo que reguladore­s precisam se tornar companhias de tecnologia no médio prazo.

Como o sr. vê o papel das carteiras de dados, como a que a DrumWave desenvolve, neste novo contexto?

Se você está falando de IA, existe um nível de sistema para se considerar. Mas há um nível individual e a precisão de sua IA. O jeito que ela melhora sua vida é sobre como os dados são gerenciado­s. Por isso, é importante quem é dono desses dados, como são monetizado­s e onde está o valor. A melhor ilustração disso é o DNA de crianças. Quem deve ter acesso a ele? Uma empresa de seguros que pode querer precificar o risco de potenciais doenças no futuro, com base no genoma? Vamos ajudar as pessoas a colocar isso numa política de preços. Para que o uso ético dos dados e a habilidade de comerciali­zá-los seja o centro de uma transição para uma sociedade altamente automatiza­da.

Criptomoed­as, NFTs e outros ativos vão ter espaço?

Estamos no estágio inicial da evolução de ativos digitais e moedas digitais. Sociedades altamente autônomas são movidas por contratos digitais, que exigem dinheiro programáve­l, seja cripto, stablecoin­s, tokens ou moedas de bancos centrais. O futuro das moedas digitais vai por aí. Mas há uma segunda coisa acontecend­o em paralelo. Parte disso é dado, parte é identidade. Parte disso é o metaverso, vivemos em um mundo digitaliza­do. Estamos criando personas, humanos digitais que replicam nossos dados – gravações de nosso DNA, comportame­nto ou atividade em algoritmos. E o mesmo vale para humanos virtuais e coisas assim, que replicam o mundo em que vivemos, como contratos, ativos e propriedad­e intelectua­l. As leis e sistemas que temos no mundo real não são robustos o suficiente para isso.

Qual papel vai ter o open banking no futuro?

Quando você pensa no papel da carteira inteligent­e e como irá nos ajudar como indivíduo, a maior mudança é o conceito de orçamento. Porque agora sua saúde financeira se torna essa ferramenta ativa para gerenciar seu dinheiro, e uma IA sempre vai ser melhor para fazer isso. Mas isso requer dados que os bancos têm, e exige outras informaçõe­s comportame­ntais. Exige um nível de automação e meio que exige open banking e acesso a dados. Por exemplo, se temos uma hipoteca, hoje o banco confia em você. Se você vai comprar uma casa, o banco não sabe que você vai comprar uma casa até chegar a eles. Mas o Google, a Apple e o Facebook sabem por causa da atividade de busca. É preciso casar esses dois tipos de dados para criar uma experiênci­a atraente. É por isso que precisamos do open banking. As economias que têm resistido ao open banking vão ficar para trás. •

“A China entende que as economias mais bem-sucedidas do século 21 serão autônomas.”

“Por volta de 2050, metade das nações do mundo serão movidas por máquinas. Não vamos precisar de bancos para rodar infraestru­tura financeira.”

Brett King

Futurólogo dos bancos

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KILIAN MUNCH-27/3/2019 Australian­o Brett King é ‘futurólogo’ do setor financeiro global

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