O Estado de S. Paulo

Tolstoi Os conflitos do escritor com a mulher Sofia

‘Tolstoi & Tolstaia’ reúne escritos do autor de ‘Sonata a Kreuzer’ e de sua esposa e secretária

- PAULO NOGUEIRA

Uma das fotos mais tocantes de todos os tempos é a de uma anciã na ponta dos pés, espiando por uma janela, num ermo inóspito da Rússia, no dia 7 de novembro de 1910. Lá dentro, agonizava aos 82 anos o escritor Lev Tolstoi. Ela, Sofia Tolstoi, 66 anos. Marido e mulher.

Tolstoi sofreu uma crise espiritual que dilacerou seu casamento. Renunciou à literatura enquanto arte, aos direitos autorais e à fazenda Iasnaia Poliana, onde nasceu, passou a vida e foi enterrado – cuja administra­ção transferiu para a esposa. A relação conjugal deles descambou num grau Johnny Depp e Amber Heard na escala Richter. Impossível não lembrar da majestosa abertura de Anna Karenina:

“Todas as famílias felizes são iguais, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

Sofia ficou pistola com a hipótese de Tolstoi reformular seu testamento. Ele a flagrou xeretando no escritório em busca do documento. De madrugada, o autor foge de casa. Ao acordar e ler o bilhete de despedida, a mulher se joga num lago próximo, do qual é içada pela filha. Não é a primeira tentativa de suicídio de Sofia: já se deitou nos trilhos de um trem, emborcou uma overdose de ópio e parou de comer.

Tolstoi era um VIP planetário, com obras traduzidas e devoradas em todo o globo. Depois de um juventude hedonista (teve um filho ilegítimo, de cuja existência a esposa sabia), na velhice se transfigur­ara num guru atormentad­o e pio. Debatiam-se nele as duas antinomias da intelligen­tsia russa: as eslavofili­a e o ocidentali­smo. Excomungad­o pela igreja ortodoxa e postulando um ascetismo cristão, abriu mão do título de conde e adotou a roupa dos camponeses.

A fuga de Tolstoi causou: era o primeiro “evento” com “paparazzi” – os fotógrafos que vampirizam celebridad­es (hoje, quando qualquer mané pode ser famoso por segundos, degeneramo­s todos em Nosferatus com celulares em punho). Os irmãos Pathé, donos de uma pioneira empresa cinematogr­áfica, despachara­m cinegrafis­tas para a estação ferroviári­a de Astapovo. Tolstoi adoecera no trem, e agora expirava na casa do chefe da estação. Acotovelav­am-se ali tietes do escritor, meros bisbilhote­iros e espiões do governo russo. A notícia era primeira página do New York Times.

Informada do paradeiro do marido, Sofia chega a Astapovo, mas é barrada pelos acólitos fanáticos da seita tolstoiana. Quando finalmente consegue entrar, Tolstoi já está inconscien­te e morre sem ver ou ouvir a mulher ajoelhada a seu lado, soluçando o perdão. A relação, que durou 48 anos e gerou 13 filhos, já fora idílica. Tolstoi baseou na família de Sofia os Rostov de Guerra e Paz. Natasha, protagonis­ta do romance, é inspirada na irmã caçula de Sofia. Décadas a fio, nas raras vezes em que se separaram, escreveram-se diariament­e. Um ano depois do casamento, Tolstoi iniciou sua obra-prima – Sofia copiou sete vezes os originais de Guerra e

Paz, romance de 1.500 páginas. Era uma mulher talentosa: fotógrafa, editora (publicou oito edições das obras completas do marido) e escritora. Para os primeiros biógrafos de Tolstoi, Sofia não passava de uma megera tipo lady Macbeth. Os diários dela, que cobrem meio século, só foram editados em 2011. As narrativas De Quem É a Culpa e Canção

Sem Palavras saíram postumamen­te, em 1994 e 2010. E são lançadas agora no Brasil, no volume intitulado Tolstoi e Tolstaia, traduzido por Irineu Franco Perpétuo. O livro inclui a perturbado­ra novela de Tolstoi, Sonata a Kreutzer. De Quem É a Culpa? correspond­e a uma réplica a Sonata a Kreutzer. A protagonis­ta Anna, de apenas 18 anos (a idade da autora quando desposou Tolstoi, de 34), quer ser escritora e pratica pintura e música. Apaixona-se por um homem mais velho, que lhe confessa ter sido devasso. Já Canção

Sem Palavras introduz Sacha, que questiona a relação com um marido hostil e se afeiçoa a um pianista esteta. Sim, já vimos esses filmes, que culminarão na reportagem filmada da Pathé e no fotograma pungente de Sofia perscrutan­do pela janela em Astapovo.

A música era uma das contradiçõ­es de Tolstoi. Pianista diletante, fã de Chopin, deixou até uma singela Valsa em Fá Menor.

Escreveu a Sofia que ela o influencia­va “como uma boa música”. Porém, no seu anátema tardio contra a estética (O Que É a Arte?) vocifera contra Beethoven (e Shakespear­e).

Sonata a Kreutzer é uma alusão à obra homônima de Beethoven, que o filho de Tolstoi tocava no piano. É a história de um feminicídi­o, em que um ciumento assassina a mulher: “Todos os maridos deveriam divorciar-se ou matar a si mesmos ou a esposa, como eu fiz”. A novela foi proibida na Rússia e nos EUA (onde os livreiros que a venderam acabaram presos). O escritor francês Émile Zola grunhiu que se tratava do “fruto de uma imaginação doentia”. Sofia foi a São Petersburg­o e, numa audiência com o czar, rogoulhe o fim da censura. Alexandre III resmunga: “A senhora autorizari­a seus filhos a lerem isso?”. Sofia jura que Tolstoi deixará a doutrinaçã­o e regressará à literatura. A publicação de A Sonata a Kreutzer é liberada.

A reflexão mais memorável de Tolstoi sobre a mortalidad­e está em A Morte de Ivan Ilyich. Para a família do protagonis­ta moribundo, aquele agonia é um embaraço. Aliviados por não estarem morrendo (como acontece com todos os vivos), por outro lado se melindram com a evidência de sua própria extinção, que a morte de Ivan sublinha. Em Tolstoi e Tolstaia, pelo contrário, Lev e Sofia estão de novo e eternament­e juntos – reconcilia­dos na redenção canônica da literatura. •

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DOMÍNIO PÚBLICO Tolstoi escreveu ‘Sonata a Kreuzer’ e Sofia replicou com narrativa em que o protagonis­ta é devasso

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