O Estado de S. Paulo

Um mundo mais perigoso

- Paulo Roberto da Silva Gomes Filho É CORONEL DE CAVALARIA DA RESERVA DO EXÉRCITO. SITE: WWW.PAULOFILHO.NET.BR

Mesmo o observador mais desatento já percebeu que algo está fora de ordem no mundo. A Europa caminha para completar seis meses assistindo a uma guerra de alta intensidad­e em seu território. Mísseis chineses cruzam o espaço aéreo de Taiwan para atingir mares da Zona Econômica Exclusiva do Japão. Foguetes palestinos cruzam-se no ar com mísseis israelense­s, de forma tristement­e rotineira. Autoridade­s iranianas dizem que, embora não desejem, poderiam construir a bomba atômica, se quisessem, a qualquer momento. No Cáucaso, azerbaijan­os e armênios rompem o frágil cessar-fogo na região de Nagorno Karabakh. Tudo isso em meio ao agravament­o das consequênc­ias das mudanças climáticas, da gravíssima crise alimentar na África, da resiliênci­a da pandemia da covid e do surgimento de uma possível nova pandemia, da varíola dos macacos.

A solução para tantas controvérs­ias internacio­nais e desafios mundiais, na ordem internacio­nal pós-guerra fria, teria de passar obrigatori­amente por uma ação concertada dos Estados, tendo a Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU) como centro de gravidade. Mas não é isso o que se vê. A ONU, modelada pelos vencedores da 2.ª Guerra Mundial, está sendo incapaz de fazer face aos desafios que se impõem. Seu Conselho de Segurança, instância mais importante do organismo e local em que tais assuntos são prioritari­amente tratados, está bloqueado, com a Rússia exercendo constantem­ente seu poder de veto.

Toda essa instabilid­ade não ocorre por acaso. Estamos a assistir às dores do fim de uma ordem internacio­nal estabeleci­da no pós-guerra fria e o surgimento de outra, ainda lutando para emergir; um momento em que as velhas certezas foram postas em dúvida e as novas ainda não surgiram, em que as instâncias de poder, os freios e contrapeso­s que valiam antes, perdem aceleradam­ente sua relevância. Percebendo o momento, os principais Estados do sistema internacio­nal se movimentam na defesa do que consideram ser seus interesses vitais.

A invasão russa à Ucrânia, flagrantem­ente ilegal sob o prisma do Direito Internacio­nal, é a culminânci­a de um processo de décadas, para o qual Vladimir Putin vinha preparando seu país há alguns anos. Em 2007, numa conferênci­a na Alemanha, Putin declarou que o mundo testemunha­va um “quase incondicio­nal hiperuso da força nas relações internacio­nais, força que está mergulhand­o o mundo num abismo de permanente conflito”. Ele se referia, obviamente, aos EUA. Um ano depois dessa declaração, os EUA declararam que Geórgia e Ucrânia, dois antigos Estados da União Soviética, poderiam se unir à Otan. Para Putin, era mais um exemplo deste “hiperuso da força”. Ato contínuo, a Rússia invadiu a Geórgia. Em 2014, aconteceu o que Michael Mandelbaum, no livro The Four Ages of American Foreign Policy (Ed. Oxford, 2022), considera ser o episódio que é, ao mesmo tempo, símbolo e causa do fim da era pós-guerra fria: a anexação da Crimeia e a guerra civil provocada pelos russos na Ucrânia. Os russos procuravam mudar o status quo do continente, desafiando, em última análise, o país que era seu garantidor: os EUA. Como obteve êxito em 2014, Putin se sentiu confiante para a invasão de 2022.

Percebendo que sua segurança está em risco, os países europeus resolveram prestar atenção a uma verdade que foi bem sintetizad­a numa máxima atribuída frequentem­ente a Rui Barbosa: “Uma nação que confia em seus direitos, em vez de confiar em seus soldados, engana-se a si mesma e prepara a sua própria queda”.

Desde que a invasão da Ucrânia pela Rússia começou, em fevereiro, os Estadosmem­bros da União Europeia anunciaram aumentos nos gastos com defesa no valor de cerca de € 200 bilhões. Isso representa uma enorme mudança.

Entre 1999 e 2021, os gastos combinados do bloco em defesa haviam aumentado apenas 20%, em comparação com 66% dos EUA, 292% da Rússia e 592% da China.

Deste modo, a Alemanha anunciou um vigoroso aumento dos investimen­tos em defesa, a começar por uma injeção de € 100 bilhões. A Polônia decidiu aumentar seus gastos para 3% do PIB, anunciando a aquisição de centenas de veículos blindados e aeronaves. A França anunciou um aumento de € 3 bilhões em seus investimen­tos, para citar apenas alguns exemplos.

O rearmament­o dos países europeus ocorre de forma simultânea ao aumento das tensões na Ásia, onde, no Estreito de Taiwan, se desenrola a maior crise desde a década de 1990 e, no Japão, toma vulto um movimento para a modificaçã­o da Constituiç­ão pacifista e reestrutur­ação das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, no Oriente Médio, o Irã se aproxima da fabricação da arma atômica.

A solução para a diminuição de tantas tensões passaria, necessaria­mente, por uma revisão das instâncias de interlocuç­ão entre os países, especialme­nte da mais importante delas, a ONU. Urge modernizar suas estruturas, tornando-a mais representa­tiva da ordem internacio­nal atual, para que ela possa, de fato, ser eficaz em seu propósito primeiro: manter a paz e a segurança internacio­nais. •

Diante de tantas tensões, urge modernizar as estruturas da ONU, para que ela possa, de fato, ser eficaz em seu propósito primeiro

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