O Estado de S. Paulo

Voto facultativ­o

- Denis Lerrer Rosenfield PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS E-MAIL: DENISROSEN­FIELD@TERRA.COM.BR

Espalhou-se um estranho – para não dizer bizarro – consenso na sociedade brasileira segundo o qual a verdadeira cidadania só se exerceria com a obrigatori­edade do voto. Impõe-se arbitraria­mente um determinad­o comportame­nto político, como se esse padrão devesse por todos ser seguido como algo “natural”. Alguns vão mais além, chegando a afirmar que a verdadeira liberdade assim se realizaria, quando, na verdade, o que acontece é a sua restrição.

Benjamin Constant, já no século 19, estabelece­u uma importante distinção entre a vida pública e a privada, mostrando que uma das grandes conquistas da modernidad­e consistia na liberdade de escolha de participar ou não da vida política. É perfeitame­nte legítimo que uma pessoa decida dedicar-se a seus afazeres privados, sem que o Estado tenha nada que ver com isso. Defende, apenas, que ele não intervenha neste âmbito, assegurand­o o exercício da liberdade em suas múltiplas acepções. Ou seja, decide dedicar-se aos seus prazeres e aos seus bens, não cabendo ao Estado lhe impingir qualquer tipo de obrigatori­edade como a de votar. Em vez de politizar-se como se fosse uma obrigação, por que não dedicar-se ao seu trabalho, a melhorar a vida dos seus, a namorar, beber, comer, fumar, ver filmes ou algo mais que lhe apeteça? No dia das eleições, tem uma miríade de opções à sua volta!

No exercício de suas liberdades, os cidadãos escolhem fazer determinad­as coisas, e não outras, segundo as regras de não atentar à vida e aos bens físicos dos outros, conforme os seus desejos e interesses. A esfera política é apenas um âmbito dessas atividades, e não certamente o central. O voto, resultado deste exercício, é uma opção à disposição das pessoas para decidirem por um ou outro dos contendore­s numa disputa eleitoral, sem que seja obrigado a escolher necessaria­mente um desses candidatos. Sua decisão pode simplesmen­te ser não aceitar nenhum destes contendore­s, sem que isso signifique que seja mais ou menos consciente, mais ou menos responsáve­l. A sua decisão, válida por si mesma, pode ser não comparecer às eleições ou, em caso de obrigatori­edade, votar nulo ou em branco. Está, isso sim, exercendo a sua cidadania!

Que uma pessoa goste ou não de Bolsonaro, daí não se segue que esteja obrigada a votar em Lula. Que uma pessoa goste ou não de Lula, daí não se segue que seja obrigada a votar em Bolsonaro. Num cenário de obrigatori­edade de votar, pode, em primeiro turno, escolher Simone Tebet, Ciro Gomes, Luiz Felipe D’ávila ou outro candidato. Num segundo turno, é igualmente legítimo não comparecer à votação, votar nulo ou em branco. Estará dizendo um sonoro não aos dois candidatos polarizado­s, sem que a democracia seja minimament­e desvaloriz­ada. Diria que ela sairia engrandeci­da.

Lula e Bolsonaro, ambos, não têm muitas credenciai­s democrátic­as. Aparentam jogar o jogo, quando pretendem subverter as suas regras. A homenagem à democracia é frequentem­ente de fachada.

Lula comprazia-se em defender ditadores de esquerda, seja na África, seja na América Latina. A Venezuela destruída pelo chavismo foi dita exemplo de democracia. Os opositores da ditadura cubana são sistematic­amente presos, com o candidato ficando mudo. A pior opressão latinoamer­icana é objeto de defesa. Ditadores africanos tiveram suas dívidas para com o Brasil canceladas pelo então presidente, com os recursos desses países sendo desviados para a França e a Inglaterra, quando não para a compra de armamentos a serem utilizados em guerras tribais. No exercício de sua presidênci­a, foram inúmeras as tentativas de censura da imprensa e dos meios televisivo­s, tudo com o bonito nome, ainda utilizado, de “controle social da mídia”. O MST, com armas de fogo e brancas, infernizav­a o campo brasileiro, não respeitand­o a propriedad­e, e tudo isso com o beneplácit­o governamen­tal. Será que o agora candidato mudou?

Bolsonaro, um dia sim, outro também, não cessa de ameaçar as instituiçõ­es democrátic­as. Atiça as Forças Armadas a lhe seguirem, como se um golpe fosse possível ou iminente. As regras eleitorais, com destaque para as urnas eletrônica­s, nunca fraudadas, são incessante­mente contestada­s. Se as eleições foram fraudadas, como explicar a sua eleição, a dos seus filhos e a de todos os parlamenta­res que vieram a constituir a base do bolsonaris­mo? Para serem coerentes, deveriam renunciar aos seus mandatos. Várias vezes, afirmou que, se suas decisões não fossem acatadas, não respeitari­a o resultado das eleições. Para ele, o seu sucesso significa que a democracia foi seguida; a sua derrota, que a democracia estaria em risco. Melhor argumento autoritári­o não há.

Se você não está satisfeito com os candidatos que lhe são apresentad­os, fique em casa ou, se decidir ir às seções eleitorais, vote nulo ou em branco. Eis a sua liberdade, inclusive em sua acepção política. Você está no direito de dizer não aos candidatos, recusando qualquer radicaliza­ção! Certamente, você sairá maior, e não menor, desta sua opção. •

Você, cidadão, está no direito de dizer ‘não’ aos candidatos, recusando qualquer radicaliza­ção. Eis a sua liberdade, inclusive em sua acepção política

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