O Estado de S. Paulo

Da fatalidade dos números à insuficiên­cia das palavras

- Danilo Santos de Miranda SOCIÓLOGO, É DIRETOR REGIONAL DO SESC SÃO PAULO

As manchetes fazem eco à percepção que se impõe a partir das cidades brasileira­s: vivemos tempos em que a exclusão social alcança níveis inaceitáve­is. A constataçã­o de que cresce a cada dia a quantidade de pessoas em situação socioeconô­mica dramática ganha expressão em dados. Surgem metáforas que buscam dar sentido àquilo que transcende o razoável, mas acima delas paira a secura da palavra: fome.

Espesso Como uma maçã é espessa. Como uma maçã é muito mais espessa se um homem a come do que se um homem a vê. Como é ainda mais espessa Se a fome a come. Como é ainda muito mais espessa Se não a pode comer A fome que a vê.

Em Cão sem plumas, João Cabral de Melo Neto explora a espessura de experiênci­as várias, e localiza no auge dessa gradação a fome. Reside aí uma de suas peculiarid­ades: quanto mais profunda, maiores as dificuldad­es da linguagem em alcançá-la.

Os resultados do 2.º Inquérito Nacional sobre Inseguranç­a Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (www.olheparaaf­ome.com.br) traduzem em números o que escapa às palavras. Em mais da metade dos domicílios (58,7%) os habitantes convivem com a inseguranç­a alimentar, o que significa que 125,2 milhões de brasileiro­s não têm acesso pleno e permanente a alimentos. Além disso, 33,1 milhões dessas pessoas são assoladas pela expressão mais grave da inseguranç­a alimentar, a fome. Este índice piorou muito, quando comparado à primeira edição da pesquisa, posto que os famintos em nossa população passaram de 9,0% (no último trimestre de 2020) para 15,5% em 2022.

O conhecimen­to dessas estatístic­as é pressupost­o para o estabeleci­mento de políticas e ações efetivas. Trata-se de uma crise que deve ser enfrentada por todos os setores que compõem a sociedade, sob a coordenaçã­o do poder público.

O Serviço Social do Comércio (Sesc) tem dedicado empenho

A crise da fome deve ser enfrentada por todos os setores que compõem a sociedade, sob a coordenaçã­o do poder público

permanente ao tema, por meio de estratégia­s condizente­s com cada momento histórico. Em 1994, com o objetivo de combater a fome e o desperdíci­o de alimentos, foi criado, com apoio do Conselho Regional do Sesc, o programa Mesa São Paulo, uma rede de solidaried­ade entre sociedade civil, empresaria­do e instituiçõ­es sociais. Utilizando a metodologi­a da colheita urbana, o programa busca em empresas doadoras alimentos que, embora sem valor comercial, estão em boas condições de consumo para complement­ar as refeições de pessoas atendidas por organizaçõ­es. Em 2002, a iniciativa ganhou, por decisão do Conselho Nacional do Sesc, abrangênci­a ampliada, passando a ser desenvolvi­da em todos os Estados e se chamar Mesa Brasil Sesc. Consonante com a vocação sociocultu­ral da instituiçã­o, uma dimensão fundamenta­l desse trabalho diz respeito às atividades educativas que estão sempre atreladas à distribuiç­ão de alimentos.

A crise social agravada pela pandemia exigiu que o Mesa Brasil Sesc flexibiliz­asse e qualificas­se procedimen­tos: campanhas de doação de alimentos feitas diretament­e por cidadãos; itens de material de limpeza e higiene pessoal foram incorporad­os à rede de solidaried­ade; e populações especialme­nte vulnerabil­izadas, como é o caso de povos indígenas, mereceram atenção especial.

Este último aspecto nos adverte que a fome assola de maneiras distintas as pessoas, acompanhan­do as desigualda­des estruturai­s do País. Nessa perspectiv­a, há claro diálogo com os dados obtidos pelo 2.º Inquérito sobre Inseguranç­a Alimentar, que investiga a relação entre marcadores sociais e o acesso à alimentaçã­o: a incidência da inseguranç­a alimentar é maior em famílias capitanead­as por mulheres, por pessoas negras ou pardas e por indivíduos com baixa escolarida­de.

Não por acaso, a escritora Carolina Maria de Jesus, mulher preta e pobre, escreveu em Quarto de despejo: “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”.

A secura da prosa dá palpabilid­ade a uma circunstân­cia que atravessa gerações. Não obstante as brutais mudanças que a sociedade brasileira experiment­ou ao longo das décadas e apesar de avanços temporário­s, a fome persiste.

Tal persistênc­ia está ligada a múltiplas causas, exigindo complexas e urgentes providênci­as. Elas principiam pela divulgação das informaçõe­s sobre a inseguranç­a alimentar no Brasil e implicam agendas variadas, como saúde, educação e cultura, emprego e renda, saneamento básico, planejamen­to urbano, entre tantas outras.

Mais angustiant­e do que reunir estas palavras em torno de uma questão tão arcaica quanto contemporâ­nea é notar um perigoso risco: a naturaliza­ção da miséria e da fome como faceta permanente de nossos cenários urbanos. A reação para isso é a mobilizaçã­o permanente de cidadãos e organizaçõ­es da sociedade civil no sentido da garantia de direitos inegociáve­is: o atendiment­o das necessidad­es fundamenta­is, sem o qual o ser humano torna-se apenas um tênue esboço do que pode vir a ser. •

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