Da fatalidade dos números à insuficiência das palavras
As manchetes fazem eco à percepção que se impõe a partir das cidades brasileiras: vivemos tempos em que a exclusão social alcança níveis inaceitáveis. A constatação de que cresce a cada dia a quantidade de pessoas em situação socioeconômica dramática ganha expressão em dados. Surgem metáforas que buscam dar sentido àquilo que transcende o razoável, mas acima delas paira a secura da palavra: fome.
Espesso Como uma maçã é espessa. Como uma maçã é muito mais espessa se um homem a come do que se um homem a vê. Como é ainda mais espessa Se a fome a come. Como é ainda muito mais espessa Se não a pode comer A fome que a vê.
Em Cão sem plumas, João Cabral de Melo Neto explora a espessura de experiências várias, e localiza no auge dessa gradação a fome. Reside aí uma de suas peculiaridades: quanto mais profunda, maiores as dificuldades da linguagem em alcançá-la.
Os resultados do 2.º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (www.olheparaafome.com.br) traduzem em números o que escapa às palavras. Em mais da metade dos domicílios (58,7%) os habitantes convivem com a insegurança alimentar, o que significa que 125,2 milhões de brasileiros não têm acesso pleno e permanente a alimentos. Além disso, 33,1 milhões dessas pessoas são assoladas pela expressão mais grave da insegurança alimentar, a fome. Este índice piorou muito, quando comparado à primeira edição da pesquisa, posto que os famintos em nossa população passaram de 9,0% (no último trimestre de 2020) para 15,5% em 2022.
O conhecimento dessas estatísticas é pressuposto para o estabelecimento de políticas e ações efetivas. Trata-se de uma crise que deve ser enfrentada por todos os setores que compõem a sociedade, sob a coordenação do poder público.
O Serviço Social do Comércio (Sesc) tem dedicado empenho
A crise da fome deve ser enfrentada por todos os setores que compõem a sociedade, sob a coordenação do poder público
permanente ao tema, por meio de estratégias condizentes com cada momento histórico. Em 1994, com o objetivo de combater a fome e o desperdício de alimentos, foi criado, com apoio do Conselho Regional do Sesc, o programa Mesa São Paulo, uma rede de solidariedade entre sociedade civil, empresariado e instituições sociais. Utilizando a metodologia da colheita urbana, o programa busca em empresas doadoras alimentos que, embora sem valor comercial, estão em boas condições de consumo para complementar as refeições de pessoas atendidas por organizações. Em 2002, a iniciativa ganhou, por decisão do Conselho Nacional do Sesc, abrangência ampliada, passando a ser desenvolvida em todos os Estados e se chamar Mesa Brasil Sesc. Consonante com a vocação sociocultural da instituição, uma dimensão fundamental desse trabalho diz respeito às atividades educativas que estão sempre atreladas à distribuição de alimentos.
A crise social agravada pela pandemia exigiu que o Mesa Brasil Sesc flexibilizasse e qualificasse procedimentos: campanhas de doação de alimentos feitas diretamente por cidadãos; itens de material de limpeza e higiene pessoal foram incorporados à rede de solidariedade; e populações especialmente vulnerabilizadas, como é o caso de povos indígenas, mereceram atenção especial.
Este último aspecto nos adverte que a fome assola de maneiras distintas as pessoas, acompanhando as desigualdades estruturais do País. Nessa perspectiva, há claro diálogo com os dados obtidos pelo 2.º Inquérito sobre Insegurança Alimentar, que investiga a relação entre marcadores sociais e o acesso à alimentação: a incidência da insegurança alimentar é maior em famílias capitaneadas por mulheres, por pessoas negras ou pardas e por indivíduos com baixa escolaridade.
Não por acaso, a escritora Carolina Maria de Jesus, mulher preta e pobre, escreveu em Quarto de despejo: “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”.
A secura da prosa dá palpabilidade a uma circunstância que atravessa gerações. Não obstante as brutais mudanças que a sociedade brasileira experimentou ao longo das décadas e apesar de avanços temporários, a fome persiste.
Tal persistência está ligada a múltiplas causas, exigindo complexas e urgentes providências. Elas principiam pela divulgação das informações sobre a insegurança alimentar no Brasil e implicam agendas variadas, como saúde, educação e cultura, emprego e renda, saneamento básico, planejamento urbano, entre tantas outras.
Mais angustiante do que reunir estas palavras em torno de uma questão tão arcaica quanto contemporânea é notar um perigoso risco: a naturalização da miséria e da fome como faceta permanente de nossos cenários urbanos. A reação para isso é a mobilização permanente de cidadãos e organizações da sociedade civil no sentido da garantia de direitos inegociáveis: o atendimento das necessidades fundamentais, sem o qual o ser humano torna-se apenas um tênue esboço do que pode vir a ser. •