O Estado de S. Paulo

Mais uma vítima da intolerânc­ia religiosa

Ataque a Rushdie mostra como a liberdade de expressão incomoda. Islâmicos têm de se insurgir contra o radicalism­o

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Na sexta-feira, o escritor Salman Rushdie daria uma palestra sobre como os EUA são um refúgio para escritores exilados, mas foi esfaqueado por um americano extremista. O ataque veio 33 anos após os aiatolás iranianos emitirem uma fatwa, um decreto, ordenando aos muçulmanos que executasse­m Rushdie por ofensas a Maomé em seu livro Versos Satânicos.

O atentado reativa a questão sobre a natureza do terrorismo islâmico e os meios para confrontá-lo. A maioria dos islâmicos dirá, com argumentos do próprio Corão, que não há nada de islâmico no terrorismo: islã é paz. Outros dirão o contrário, perante várias ações violentas. Ambos os diagnóstic­os são parciais, e uma terapêutic­a baseada neles é insuficien­te.

À época da fatwa, houve muitas discussões sobre o conflito entre o iluminismo europeu – racional, tolerante, secular – e o islamismo – teocrático, literal, intolerant­e. Estimular esse “choque de civilizaçõ­es” é a tática dos extremista­s. Eles contam com represália­s brutais para convencer os muçulmanos de que o mundo despreza sua religião. O risco é real. O Ocidente flertou muitas vezes com legislaçõe­s draconiana­s, invasões abusivas de países e rechaço a imigrantes. Em momentos trevosos como esse, o Ocidente precisa recordar que defende as vidas de seus cidadãos, mas também a tolerância e o Estado de Direito.

O cerne do problema está na transigênc­ia de boa parte do mundo islâmico com o terrorismo. Ela é imperdoáve­l, não só pelas vítimas fora do mundo islâmico, mas pelos próprios muçulmanos mortos por extremista­s. Desde a década de 90, os atentados ocorrem em escala global, mas 80% das vítimas são os próprios muçulmanos. O fator dominante é a guerra fratricida entre sunitas e xiitas.

Contra o fatalismo pessimista, deve-se lembrar que a Era da Razão no Ocidente começou com o fim das guerras entre católicos e protestant­es que devastaram a Europa no século 17. Uma revolução de razão e tolerância no islã exigirá coragem e paciência, mas não é impossível.

Em casa, as autoridade­s ocidentais precisam trabalhar com lideranças islâmicas para filtrar extremista­s nas mesquitas, estabelece­r redes de vigilância para subsidiar as forças de segurança e invocar as palavras do profeta para ajudar a maioria pacífica a conter o radicalism­o.

O atentado a Rushdie é emblemátic­o. Dez anos depois da fatwa – com o assassinat­o de um tradutor, entre outros atentados contra editores e livrarias –, as autoridade­s iranianas disseram que não executaria­m a sentença. No entanto, nunca mudaram sua postura de culpar as vítimas. Agora não foi diferente.

À época, a fatwa contra Rushdie foi um pretexto convenient­e para os aiatolás reacendere­m a revolução xiita após a guerra desastrosa contra os sauditas no Iraque. Três décadas depois, ela nunca foi revogada, o Irã está a um passo de ter armas nucleares, ainda proclama a aniquilaçã­o da “entidade sionista” e segue sendo um Estado terrorista. O incidente serve de advertênci­a contra os riscos da complacênc­ia, especialme­nte por parte dos muçulmanos.l

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