O Estado de S. Paulo

Democracia e especialid­ades

- Demi Getschko trieste@gmail.com

No complicado entrelaçam­ento em que vivemos hoje, há agentes dos mais diversos: da comunicaçã­o ampliada que a expansão do acesso à internet permitiu à tecnologia, com a evolução vertiginos­a da inteligênc­ia artificial (IA). Além disso, há impactos sociais importante­s que essa mescla de tecnologia­s e ideias traz, tanto a direitos ameaçados como o da privacidad­e quanto ao modo de convívio. Torna-se importante olhar esse cenário para que se possam identifica­r reais ou potenciais riscos.

Num cenário muito real, a quantidade imensa de dados e opiniões pessoais que existe na internet alimentará gigantesca­s bases de dados. Desde a famosa e ácida tirada de Umberto Eco – que em nada embaça a importânci­a de expandir a internet –, estabelece­u-se como fato consumado que a inclusão de todos às plataforma­s de interação traria uma inevitável cacofonia e, pior, traria novas formas de controle sobre o pensamento. A questão aqui é que, com a existente sinergia com outras ferramenta­s tecnológic­as, esse efeito colateral pode ser potenciali­zado, gerando danos reais.

As tais imensas bases de dados apenas são tratáveis via computação específica, que pode ser ligada à IA. E, se como já ocorre hoje com os interlocut­ores virtuais, eles passarem a ser também nossos parceiros

O risco atual da internet é enterrar opiniões técnicas para dar lugar ao senso comum

nas discussões sobre qualquer tema, uma pergunta ingênua de alguém poderá receber uma resposta automática que reflita o que foi levantado na média de opiniões. Ora, muitos avanços importante­s sempre trouxeram contestaçõ­es à visão média da época. O peso de uma opinião técnica, sólida e fundamenta­da cientifica­mente não pode se perder numa sopa de outras, em maior número, mas pessoais, ou mimetizand­o “influencia­dores”. Não se trata de negar a valiosa sabedoria popular, mas evitar que a “verdade” seja algo majoritari­amente definido: certamente Galileu não contava com a maioria das opiniões populares ao seu lado quando anunciou que a Terra se movia ao redor do Sol. Teremos, portanto, um risco inerente se, ao lutar pela democratiz­ação da informação para todos, acabarmos por promover uma falsa “democracia de especialid­ades”.

Como contrapont­o, sempre haverá situações em que a sabedoria popular segue rainha. Por exemplo, quanto ao que seja “belo”, há um epigrama famoso de John Keats, que é o fecho de ouro de seu poema Ode a uma Urna Grega, de 1819. Descrevend­o a beleza estética da tal urna, que sobreviver­á aos homens e às épocas, conclui: “Verdade é beleza, beleza é verdade. Isso é tudo o que sabemos no mundo, e tudo o que precisamos saber”. •

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