O Estado de S. Paulo

‘A esquerda está de mãos atadas na América Latina’

Para analista, cenário regional e global dificulta cumpriment­o das promessas de campanha

- JOSÉ FUCS

Efeito bumerangue Para Garman, os mesmos fatores que estão levando líderes da esquerda à vitória dificultar­ão seus governos

Formado em ciência política, é diretor para as Américas da Eurasia, consultori­a internacio­nal especializ­ada em avaliação de riscos

Ocientista político Christophe­r Garman, não “compra” a ideia de que o avanço da esquerda na América Latina se deve a uma guinada ideológica dos eleitores, como dizem por aí políticos e militantes do grupo. Segundo ele, o que está levando a esquerda a vitórias em série na região é “um profundo sentimento desencanto com o sistema e de revolta contra o status quo”. Nesta entrevista, que faz parte da série sobre o avanço das esquerdas na América Latina lançada pelo Estadão, ele afirma também que, no atual cenário regional e global, os governante­s do grupo na região “estão de mãos atadas” e terão dificuldad­e para cumprir as promessas de campanha.

Como o sr. analisa a atual onda de governos de esquerda na América Latina? O que está levando a esta guinada para a esquerda na região? Isto não está acontecend­o por causa de uma predisposi­ção em favor de plataforma­s de esquerda. É um movimento de revolta contra o status quo. Quando a gente olha as pesquisas, a América Latina aparece no topo do ranking global de desencanto. A geologia da opinião pública está podre. Estamos vivendo um ambiente de insatisfaç­ão muito grande com a qualidade dos serviços públicos, com falta de confiança no sistema de forma mais ampla. A confiança nas lideranças políticas, nos partidos, no Judiciário, na mídia, está num nível muito baixo.

Na sua visão, a que se deve este alto grau de desencanto? É fruto de uma expansão brutal da classe média no período de alta dos preços das commoditie­s, do início dos anos 2000 até 2011, 2012. Milhões de famílias saíram da miséria. Isso levou a uma mudança nas demandas eleitorais. A preocupaçã­o passou a ser mais segurança, saúde, educação. O eleitor associou a corrupção à má qualidade dos serviços públicos. Antes da pandemia, a corrupção havia se tornado o primeiro ou o segundo tema mais relevante no Brasil, no Chile, na Colômbia, no México, no Peru, e houve esse descrédito total no sistema. No fundo, o que a gente está vendo é uma combinação deste choque de falta de confiança com novas demandas de uma classe média emergente que são difíceis de entregar num contexto de cresciment­o econômico mais baixo.

Como a pandemia se encaixa neste cenário?

A pandemia pegou a América Latina, em termos epidemioló­gicos, com mais força do que outras regiões. Então, houve uma queda mais acentuada do PIB (Produto Interno Bruto), a desigualda­de aumentou e a capacidade de os governos atenderem a essas demandas caiu. Isso exacerbou esse mal estar. Para completar, veio o choque de inflação global que reforçou a queda de renda das famílias mais pobres. Este é o caldeirão de revolta que está elegendo a esquerda na região. Como mais governos de direita e de centro estavam no poder, eles estão sentindo mais. A esquerda estava mais bem posicionad­a para navegar nesta onda.

Em que medida esta nova onda de esquerda é diferente da que se propagou pela América Latina do início dos anos 2000 até meados da década passada?

O quadro atual é muito diferente. A primeira onda aconteceu em meio ao boom das commoditie­s e a um superciclo econômico e político que proporcion­ou uma abundância de recursos e levou a taxas de aprovação muito altas dos governante­s. Agora, este ambiente de desencanto vai impactar a esquerda politicame­nte. Os governante­s vão ter uma lua de mel curta e uma taxa de aprovação estrutural­mente baixa. A capacidade de os governante­s se reelegerem também deve diminuir estrutural­mente.

Agora, hoje também está ocorrendo uma alta das commoditie­s. Isto também não pode ter um impacto positivo para os atuais governante­s latino-americanos? Sim, isto ajuda o governo do lado da arrecadaçã­o. Mas, em termos de trocas, não está ajudando muito, porque o valor das importaçõe­s, dos insumos, também subiu muito. Os preços das commoditie­s estão elevados, mas a renda caiu no Brasil e em outros países. A sensação de bem estar não está acompanhan­do este ciclo. Os ganhos políticos, portanto, não são os mesmos que os da primeira onda. Além disso, há um cenário de recessão nos Estados Unidos, na Europa, e de desacelera­ção na China. Isso deverá conter esta alta das commoditie­s. Todos os países da América Latina aumentaram os juros para tentar controlar a inflação. A conta vai chegar nos próximos 12 meses.

Que efeito isso deve ter? Os mesmos fatores que estão levando líderes da esquerda a ganhar as eleições vão dificultar seus governos e colocar restrições no que podem entregar e fazer. Por isso, o potencial de estrago da esquerda hoje está mais limitado, porque eles não vão ter capacidade de se reeleger, de encaminhar medidas mais ambiciosas, até porque muitas vezes não têm apoio parlamenta­r e terão de compor com o centro. Então, os governos de esquerda estão com as mãos atadas. •

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TABA BENEDICTO/ESTADÃO Garman diz que o ‘potencial de estrago’ da esquerda está mais limitado
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Leia a entrevista completa de Christophe­r Garman www.estadao.com.br/
NA WEB Leia a entrevista completa de Christophe­r Garman www.estadao.com.br/

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