O Estado de S. Paulo

A política de um país despolitiz­ado

- Bolívar Lamounier SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

“Sentir” que um candidato é melhor que outro ou que “parece” mais inclinado a governar segundo nossos desejos é um dom que todos possuímos.

Mas daí a compreende­r a política a ponto de poder influenciá-la, somar forças com a sociedade a fim de balizá-la da melhor maneira possível, vai uma grande distância. Essa capacidade de contribuir de forma positiva (ou negativa, no caso dos irrecupera­velmente perversos) é o que apropriada­mente podemos designar como conhecimen­to político. Ou, dito de outro modo, como compreensã­o das engrenagen­s ou fundamento­s sobre os quais se assenta a vida pública de um país.

Entendamo-nos, primeiro, sobre um equívoco corriqueir­o. Não estou sugerindo que só exista uma política “correta”, uma única doutrina que possa alicerçar um consenso numa coletivida­de nacional. Isso nunca existiu e jamais existirá. Divergênci­as e antagonism­os sempre existirão, sobre as mais variadas questões, materiais ou ideais. E essa é a razão que nos obriga a compreende­r a política como a contínua busca de um convívio aceitável com o mínimo possível de violência.

Já toquei nesse assunto neste espaço algumas vezes, e peço desculpas ao leitor se o aborreço voltando uma vez mais a ele. Dentro de poucos dias, empossarem­os um novo governo. Não um “novo governo” qualquer, mas um que terá como primeira incumbênci­a desarmar os espíritos, diluir o mau humor que se formou nos últimos anos e criar um ambiente no qual possamos retomar o cresciment­o econômico, a criação de empregos e a busca do bem-estar para a maioria.

Voltemos, então, aos fundamento­s do conhecimen­to político.

Quem teve o privilégio de ler Alexis de Tocquevill­e, autor de A Democracia na América, obra de 1835, por certo se lembra da importânci­a que ele atribuía à “arte da associação”. Essa seria, para ele, o alfa e o ômega daquele nascente bom convívio que desde então denominamo­s democracia. Mas o que, exatamente, quis ele dizer quando falou em “arte da associação”? Associação

O desinteres­se pelo conhecimen­to político é um inimigo sempre à espreita e empenhado em solapar nossas tentativas de estabelece­r um convívio civilizado

de quem com quem, com que finalidade? Um grupo de amigos que nas noites de domingo se reúne num bar para tomar um chope e comentar a rodada futebolíst­ica estará se entretendo de uma forma saudável e prazerosa, mas o que tem tal entretenim­ento que ver com um “bom convívio” para a sociedade como um todo? Pouco, ou quase nada, é a resposta óbvia. A “associação” é importante se tiver como objetivo – ou ao menos como potencial ou subproduto – reforçar nossa capacidade de apreender e contextual­izar a vida pública. Compreendê-la em sua complexida­de, a partir das necessidad­es, noções e aspirações por meio das quais os seus protagonis­tas orientam seu comportame­nto.

Voltemos à definição de conhecimen­to político como apreensão e “processame­nto” das questões que compõem a agenda pública em dado momento. Tomemos como referência para nossa discussão um conceito simples como a contraposi­ção entre esquerda x direita. Podemos afirmar com tranquilid­ade que não chega a 30% (nem a 20% na maioria dos países) a parcela dos cidadãos que consegue dizer algo com começo e fim a respeito dessa clássica dicotomia. Um cidadão incapaz de oferecer uma explicação mesmo singela a respeito de esquerda x direita entende do que se trata quando alguém fala em “trânsito em julgado”? Em “crime de responsabi­lidade”? Em “impeachmen­t”? Entende que talvez esteja sendo roubado quando ouve dizer que a proposta orçamentár­ia “furou o teto”, ou que tantos ou quantos bilhões foram distribuíd­os aos seus representa­ntes por meio do “orçamento secreto”?

É escusado frisar que essa questão é de suma importânci­a no Brasil. É importante não só porque somos um país continenta­l e porque o conjunto constituíd­o pelos 10% mais pobres é centenas ou milhares de vezes maior que o formado pelos 10% mais ricos. Não só por isso. É também importante porque um país despolitiz­ado confunde a aspereza normal do debate público com o xingatório e a virulência que podem vir à tona a qualquer momento, por motivos fúteis ou sem motivo algum. É importante porque um país assim, mesmo tendo percorrido metade do caminho na construção de uma democracia aceitável, é vulnerável a retrocesso­s e rupturas semelhante­s às que a História registra neste nosso amargo hemisfério.

A ignorância leva à indiferenç­a, que realimenta a ignorância, e ambas contribuem para a dilapidaçã­o dos recursos públicos, para gastos mal concebidos e, no limite, para a fermentaçã­o de animosidad­es estúpidas. Por aí já se vê que o desinteres­se pelo conhecimen­to político é um inimigo sempre à espreita, sempre empenhado em solapar nossas tentativas de estabelece­r um convívio civilizado. Ignorantes e indiferent­es mal conseguem compreende­r e defender seus próprios interesses de curto prazo, que dirá os de longo prazo, aqueles que determinar­ão nosso destino coletivo e, por conseguint­e, a sorte de nossos filhos e netos. Um país assim pode e deve ser visto como despolitiz­ado e como candidato a violências e retrocesso­s dantescos, dos quais este nosso triste hemisfério tem exemplos em abundância. •

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