O Estado de S. Paulo

A mão que rabisca um mapa

- João Gabriel de Lima

U mmapa de Brasília publicado no site do Estadão mostra os lugares onde extremista­s que apoiam o presidente Jair Bolsonaro queimaram ônibus, explodiram carros e depredaram prédios – entre eles, a 5.ª delegacia da Polícia Civil. A navegação digital permite assistir aos vídeos que mostram os vândalos bolsonaris­tas em ação. São cenas de horror.

É inevitável lembrar de outro mapa – este do Rio de Janeiro, rabiscado há mais de 30 anos, à mão. Nele, um militar desenha o sistema de abastecime­nto hidráulico da cidade, com destaque para a adutora do Guandu. Diante de uma repórter incrédula, ameaça colocar uma bomba na adutora caso uma reivindica­ção de reajuste salarial não fosse atendida. A repercussã­o da reportagem, publicada na revista Veja, atrapalhou os planos do militar.

Um livro nos ajuda a entender o percurso entre o horror que não chegou a acontecer e o que tomou as ruas de Brasília: O ovo da serpente, da jornalista Consuelo Dieguez. É uma obra essencial, que entrevista bolsonaris­tas e mergulha nas entranhas do fenômeno. Consuelo mostra que o atual presidente não é produto apenas do universo paralelo das fake news. Vários grupos organizado­s pavimentar­am seu caminho.

“Eles viram em Bolsonaro o único que poderia derrotar o PT, e acharam que seria possível controlá-lo no governo”, diz

Livro mostra grupos organizado­s que pavimentar­am o caminho para o atual presidente

Consuelo, entrevista­da no minipodcas­t da semana. Entre esses grupos estão militares que se sentiram ameaçados com a Comissão da Verdade, pecuarista­s amedrontad­os com o MST e evangélico­s que se opunham a uma pauta mais liberal na área dos costumes.

Bolsonaro, no entanto, mostrou que era – e ainda é – incontrolá­vel. O livro conta que, durante a campanha eleitoral, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz ouviu de um historiado­r amigo: “Quem vai segurar esse doidão, esse cavalão?” Santos Cruz respondeu: “Eu vou segurar. Sou diferente de vocês, da esquerda, que não seguraram o doidão de vocês, o Lula”.

Santos Cruz ocupou a Secretaria de Governo. Foi um dos primeiros a ser exonerado.

Consuelo calcula que os bolsonaris­tas raiz somem uns 10% da população e que os extremista­s que queimam ônibus sejam uma pequena fração disso. Trata-se de uma minoria – uma minoria perigosa. Bolsonaro, o indomável, não parece apto a controlá-la nem interessad­o. Como observou o Estadão em editorial, até incentiva seus apoiadores extremista­s, ao avalizar as supostas razões para os atos de vandalismo.

Talvez isso ocorra porque a mão que hoje segura a caneta presidenci­al é a mesma que, em 1987, rabiscou o mapa de um atentado a bomba. •

ESCRITOR, PROFESSOR DA FAAP E DOUTORANDO EM CIÊNCIA POLÍTICA NA UNIVERSIDA­DE DE LISBOA

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