Mundo teme que a democracia dos EUA se perca
Muitos atribuem a Donald Trump o fato de um dos pilares do país estar balançando
Em 6 de janeiro de 2021, incitada por Trump, uma multidão invadiu o Congresso para impedir a certificação da vitória de Joe Biden
Lin Wei-hsuan era menino quando testemunhou a primeira eleição em Taiwan, quase duas décadas atrás. Seus pais o levaram para assistir à contagem dos votos, onde voluntários levantavam cada cédula, pronunciando em voz alta a opção anotada e marcando em uma tabela o resultado à vista de todos: a enorme multidão no local e muitos outros que assistiam ao vivo pela televisão.
O processo aberto, estabelecido após décadas de lei marcial, foi um dos vários passos criativos que os líderes taiwaneses deram para construir a confiança do público na democracia e conquistar os Estados Unidos, cujo apoio poderia dissuadir o objetivo da China de unificação.
Na época, os EUA eram o que Taiwan aspirava ser. Mas agora, muitas democracias que antes consideravam os EUA um modelo estão preocupadas com a possibilidade de os americanos terem se perdido. Elas se perguntam por que uma superpotência famosa pela inovação é incapaz de resolver sua profunda polarização, produzindo um ex-presidente que espalhou notícias falsas de fraude eleitoral que fatias significativas do Partido Republicano e do eleitorado aceitaram.
“A democracia precisa revisar a si mesma”, afirmou Lin, de 26 anos, candidato a vereador que faz campanha por coleta de lixo eficiente e redução da idade mínima para votar em Taiwan de 20 para 18 anos. “Precisamos olhar para o que ela tem feito e fazer melhor.”
RISCO.
Para a maior parte do mundo, as eleições de meio de mandato nos EUA são pouco mais que um sinal no radar – mas são outro ponto na evolução do que muitos consideram uma tendência de risco. Especialmente em países que encontraram maneiras de fortalecer seus processos democráticos, acadêmicos, autoridades e eleitores revelaram em entrevistas estar alarmados em razão de os EUA parecerem estar fazendo o oposto, afastando-se de seus ideais fundamentais.
Vários críticos da direção dos EUA citaram a insurreição do 6 de Janeiro como uma violenta rejeição à insistência da democracia pela transferência pacífica de poder. Outros expressaram preocupação a respeito de Estados erigindo barreiras para votação após o comparecimento recorde que resultou da disseminação dos votos antecipados e pelo correio durante a pandemia. Alguns disseram se preocupar em razão de a Suprema Corte ter se tornado vítima da política partidária, como Judiciários de nações que enfrentam dificuldades para estabelecer cortes independentes.
“Os EUA não chegaram à posição que ocupam hoje da noite para o dia”, afirmou o sociólogo Helmut Anheier, professor da Escola Hertie, em Berlim, e um dos principais pesquisadores do Índice Berggruen de Governança, um estudo de 134 países no qual os EUA se colocam abaixo da Polônia em termos de qualidade de vida, em uma escala definida por acesso a serviços públicos como saúde e educação. “Demorou um pouco para chegarem a esse ponto e demorará um pouco para saírem.”
Em 1991, estudos mostraram que os canadenses se dividiam quase igualmente entre qual dos dois países possuía o melhor sistema de governo. Em uma pesquisa que lhes fez a mesma
TRUMP.
pergunta, no ano passado, apenas 5% preferiram o sistema americano ao canadense.
Para alguns, no Canadá e em outros países que se consideram amigos próximos dos EUA, os primeiros sinais de problemas emergiram na corrida presidencial de 2000, quando George W. Bush venceu Al Gore por uma margem estreita, com uma decisão da Suprema Corte.
Para outros, foi a vitória de Donald Trump em 2016, apesar de sua derrota no voto popular, seguida por sua recusa em aceitar a derrota em 2020 e a falta de punições para quem repetiu suas mentiras – incluindo centenas de candidatos republicanos nas eleições deste ano.
“Muita gente imaginou que Trump fosse um tipo de acontecimento idiossincrático singular e, uma vez que ele não fosse mais presidente, tudo voltaria automaticamente ao normal”, afirmou o ex-premiê australiano Malcolm Turnbull, de centro-direita, que exercia a função quando Trump assumiu. “E, claramente, não foi isso que aconteceu. É como assistir um parente próximo, pelo qual você tem enorme afeição, passar a se autoflagelar. É perturbador.”
O Canadá empreendeu mudanças constantes para melhorar seu sistema eleitoral. Em 1920, o país colocou as eleições federais sob controle de uma autoridade independente, que detém poder para punir quem viola as regras. A responsabilidade para estabelecer circunscrições eleitorais foi entregue a dez comissões igualmente independentes, uma para cada província, em 1964.
Taiwan e mais de uma dezena de países também estabeleceram organismos independentes para desenhar distritos eleitorais e garantir que os votos sejam depositados e contados uniformemente e de maneira justa.
A estratégia não é à prova de falhas. Nigéria, Paquistão e Jordânia também possuem comissões eleitorais. Mas muitas de suas eleições ainda fracassam em termos de liberdade e lisura.
Mas nos lugares em que, segundo os estudos, o comparecimento às urnas e a satisfação com os processos eleitorais são mais altos, as eleições são organizadas por organismos nacionais designados para ser apolíticos e inclusivos. Mais de cem países possuem alguma forma de registro eleitoral compulsório e inclusivo; em geral, as democracias têm facilitado o voto nos anos recentes, não dificultado.
LIMITES.
As democracias mais saudáveis do mundo também possuem limites mais estritos para doações de campanha – no Canadá, doações de empresas e sindicatos para políticos são proibidas, assim como campanhas de ação política para promover partidos ou candidatos. E muitas democracias empreenderam mudanças.
“A democracia precisa revisar a si mesma. Precisamos olhar para o que a democracia tem feito e fazer melhor” Lin Wei-hsuan
Candidato a vereador em Taiwan, de 26 anos
A Nova Zelândia reformou seu sistema eleitoral nos anos 90, com um referendo, após uma eleição na qual o partido que obteve mais votos não garantiu maioria no Parlamento. A África do Sul está a caminho de mudar seu sistema eleitoral com base em partidos políticos para possibilitar que candidatos independentes concorram e vençam. quanto sua miopia: os americanos raramente procuram ideias no exterior.
“Temos tamanho mito em torno de nossa Constituição e do excepcionalismo americano. Primeiro, isso torna as pessoas muito complacentes; segundo, faz com que os líderes demorem muito para reconhecer o risco que estamos encarando. Significa que é muito difícil se adaptar”, afirmou Mccoy. ele, “até o maior fã dos EUA tem de perguntar: ‘como isso pôde acontecer com os garantidores da democracia?’”.
Trata-se de uma dúvida comum em países que no passado tiveram os EUA como exemplo.
Numa quinta-feira, no departamento de ciência política da Universidade Cheikh Anta Diop, em Dacar, Senegal, meia dúzia de estudantes da graduação reuniram-se no escritório de um professor para debater a possibilidade de as eleições serem fraudadas nos EUA.
“Considere a democracia americana depois de Trump. Sem dúvida, ela está mais fraca”, afirmou o estudante Souleymane Cissé, de 23 anos.
Alguns líderes mundiais tiraram vantagem dessa fraqueza perceptível. O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, ambos eleitos democraticamente e com tendências autocráticas, louvaram Trump e sua ala no Partido Republicano.
O premiê da Índia, Narendra Modi, que perseguiu uma agenda nacionalista hindu ocasionando acusações de retrocesso democrático, insiste que o Ocidente não está em posição de pressionar nenhum país em razão de indicadores de democracia. De Mianmar ao Mali, líderes de golpes militares também constataram que podem subverter a democracia sem reações internacionais significativas.
REAÇÕES.
“Se você é ou quer ser autocrata, o preço que você paga hoje é muito menor do que o preço que você costumava pagar 30 anos atrás”, afirmou Kevin Casas-zamora, ex-vice-presidente da Costa Rica, que atualmente dirige o Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral, um grupo de defesa da democracia integrado por 34 países. “E isso se deve em parte aos EUA.”
Até os reformadores estão começando a se perguntar o que podem esperar, razoavelmente, de suas instituições mais elevadas. Na África do Sul, quando um novo presidente da Suprema Corte foi nomeado alguns meses atrás, houve questionamentos a respeito de o tribunal ser ou não apolítico ou mesmo se seria capaz de o ser.
DESAFIO.
Todos esses países – e outros mais – estão confrontando o enorme desafio que os EUA tornaram mais visível: atores antidemocráticos dentro das democracias.
Vinokuras afirmou que a Lituânia e seus vizinhos foram mais resistentes a essas forças, pois podem ver ao que elas levam olhando para a vizinhança. “O que tem impedido o populismo desenfreado nos Estados Bálticos de ganhar terreno é a Rússia fascista”, afirmou.
O que as democracias precisam, acrescentou Vinokuras, é de investimentos e melhorias – das melhores ideias, não importando de onde venham – e de um comprometimento firme em isolar os que violam regras. “Em geral, a democracia se degenerou, se tornou inútil. Virou mais uma anarquia. Tolerância ilimitada destrói as fundações da democracia.”
Em Taiwan, muitas pessoas expressaram o mesmo argumento: a ameaça da China torna a democracia mais preciosa, ajudando as pessoas a se lembrar que seus benefícios se concretizam apenas por meio de conexões compartilhadas entre diferentes campos. “Se um país pretende continuar avançando, os líderes de todos os partidos deveriam desempenhar o papel de pontes”, afirmou Lin. •
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL