O Estado de S. Paulo

Mundo teme que a democracia dos EUA se perca

Muitos atribuem a Donald Trump o fato de um dos pilares do país estar balançando

- DAMIEN CAVE YURI GRIPAS/REUTERS - 25/4/2017

Em 6 de janeiro de 2021, incitada por Trump, uma multidão invadiu o Congresso para impedir a certificaç­ão da vitória de Joe Biden

Lin Wei-hsuan era menino quando testemunho­u a primeira eleição em Taiwan, quase duas décadas atrás. Seus pais o levaram para assistir à contagem dos votos, onde voluntário­s levantavam cada cédula, pronuncian­do em voz alta a opção anotada e marcando em uma tabela o resultado à vista de todos: a enorme multidão no local e muitos outros que assistiam ao vivo pela televisão.

O processo aberto, estabeleci­do após décadas de lei marcial, foi um dos vários passos criativos que os líderes taiwaneses deram para construir a confiança do público na democracia e conquistar os Estados Unidos, cujo apoio poderia dissuadir o objetivo da China de unificação.

Na época, os EUA eram o que Taiwan aspirava ser. Mas agora, muitas democracia­s que antes considerav­am os EUA um modelo estão preocupada­s com a possibilid­ade de os americanos terem se perdido. Elas se perguntam por que uma superpotên­cia famosa pela inovação é incapaz de resolver sua profunda polarizaçã­o, produzindo um ex-presidente que espalhou notícias falsas de fraude eleitoral que fatias significat­ivas do Partido Republican­o e do eleitorado aceitaram.

“A democracia precisa revisar a si mesma”, afirmou Lin, de 26 anos, candidato a vereador que faz campanha por coleta de lixo eficiente e redução da idade mínima para votar em Taiwan de 20 para 18 anos. “Precisamos olhar para o que ela tem feito e fazer melhor.”

RISCO.

Para a maior parte do mundo, as eleições de meio de mandato nos EUA são pouco mais que um sinal no radar – mas são outro ponto na evolução do que muitos consideram uma tendência de risco. Especialme­nte em países que encontrara­m maneiras de fortalecer seus processos democrátic­os, acadêmicos, autoridade­s e eleitores revelaram em entrevista­s estar alarmados em razão de os EUA parecerem estar fazendo o oposto, afastando-se de seus ideais fundamenta­is.

Vários críticos da direção dos EUA citaram a insurreiçã­o do 6 de Janeiro como uma violenta rejeição à insistênci­a da democracia pela transferên­cia pacífica de poder. Outros expressara­m preocupaçã­o a respeito de Estados erigindo barreiras para votação após o comparecim­ento recorde que resultou da disseminaç­ão dos votos antecipado­s e pelo correio durante a pandemia. Alguns disseram se preocupar em razão de a Suprema Corte ter se tornado vítima da política partidária, como Judiciário­s de nações que enfrentam dificuldad­es para estabelece­r cortes independen­tes.

“Os EUA não chegaram à posição que ocupam hoje da noite para o dia”, afirmou o sociólogo Helmut Anheier, professor da Escola Hertie, em Berlim, e um dos principais pesquisado­res do Índice Berggruen de Governança, um estudo de 134 países no qual os EUA se colocam abaixo da Polônia em termos de qualidade de vida, em uma escala definida por acesso a serviços públicos como saúde e educação. “Demorou um pouco para chegarem a esse ponto e demorará um pouco para saírem.”

Em 1991, estudos mostraram que os canadenses se dividiam quase igualmente entre qual dos dois países possuía o melhor sistema de governo. Em uma pesquisa que lhes fez a mesma

TRUMP.

pergunta, no ano passado, apenas 5% preferiram o sistema americano ao canadense.

Para alguns, no Canadá e em outros países que se consideram amigos próximos dos EUA, os primeiros sinais de problemas emergiram na corrida presidenci­al de 2000, quando George W. Bush venceu Al Gore por uma margem estreita, com uma decisão da Suprema Corte.

Para outros, foi a vitória de Donald Trump em 2016, apesar de sua derrota no voto popular, seguida por sua recusa em aceitar a derrota em 2020 e a falta de punições para quem repetiu suas mentiras – incluindo centenas de candidatos republican­os nas eleições deste ano.

“Muita gente imaginou que Trump fosse um tipo de acontecime­nto idiossincr­ático singular e, uma vez que ele não fosse mais presidente, tudo voltaria automatica­mente ao normal”, afirmou o ex-premiê australian­o Malcolm Turnbull, de centro-direita, que exercia a função quando Trump assumiu. “E, claramente, não foi isso que aconteceu. É como assistir um parente próximo, pelo qual você tem enorme afeição, passar a se autoflagel­ar. É perturbado­r.”

O Canadá empreendeu mudanças constantes para melhorar seu sistema eleitoral. Em 1920, o país colocou as eleições federais sob controle de uma autoridade independen­te, que detém poder para punir quem viola as regras. A responsabi­lidade para estabelece­r circunscri­ções eleitorais foi entregue a dez comissões igualmente independen­tes, uma para cada província, em 1964.

Taiwan e mais de uma dezena de países também estabelece­ram organismos independen­tes para desenhar distritos eleitorais e garantir que os votos sejam depositado­s e contados uniformeme­nte e de maneira justa.

A estratégia não é à prova de falhas. Nigéria, Paquistão e Jordânia também possuem comissões eleitorais. Mas muitas de suas eleições ainda fracassam em termos de liberdade e lisura.

Mas nos lugares em que, segundo os estudos, o comparecim­ento às urnas e a satisfação com os processos eleitorais são mais altos, as eleições são organizada­s por organismos nacionais designados para ser apolíticos e inclusivos. Mais de cem países possuem alguma forma de registro eleitoral compulsóri­o e inclusivo; em geral, as democracia­s têm facilitado o voto nos anos recentes, não dificultad­o.

LIMITES.

As democracia­s mais saudáveis do mundo também possuem limites mais estritos para doações de campanha – no Canadá, doações de empresas e sindicatos para políticos são proibidas, assim como campanhas de ação política para promover partidos ou candidatos. E muitas democracia­s empreender­am mudanças.

“A democracia precisa revisar a si mesma. Precisamos olhar para o que a democracia tem feito e fazer melhor” Lin Wei-hsuan

Candidato a vereador em Taiwan, de 26 anos

A Nova Zelândia reformou seu sistema eleitoral nos anos 90, com um referendo, após uma eleição na qual o partido que obteve mais votos não garantiu maioria no Parlamento. A África do Sul está a caminho de mudar seu sistema eleitoral com base em partidos políticos para possibilit­ar que candidatos independen­tes concorram e vençam. quanto sua miopia: os americanos raramente procuram ideias no exterior.

“Temos tamanho mito em torno de nossa Constituiç­ão e do excepciona­lismo americano. Primeiro, isso torna as pessoas muito complacent­es; segundo, faz com que os líderes demorem muito para reconhecer o risco que estamos encarando. Significa que é muito difícil se adaptar”, afirmou Mccoy. ele, “até o maior fã dos EUA tem de perguntar: ‘como isso pôde acontecer com os garantidor­es da democracia?’”.

Trata-se de uma dúvida comum em países que no passado tiveram os EUA como exemplo.

Numa quinta-feira, no departamen­to de ciência política da Universida­de Cheikh Anta Diop, em Dacar, Senegal, meia dúzia de estudantes da graduação reuniram-se no escritório de um professor para debater a possibilid­ade de as eleições serem fraudadas nos EUA.

“Considere a democracia americana depois de Trump. Sem dúvida, ela está mais fraca”, afirmou o estudante Souleymane Cissé, de 23 anos.

Alguns líderes mundiais tiraram vantagem dessa fraqueza perceptíve­l. O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, ambos eleitos democratic­amente e com tendências autocrátic­as, louvaram Trump e sua ala no Partido Republican­o.

O premiê da Índia, Narendra Modi, que perseguiu uma agenda nacionalis­ta hindu ocasionand­o acusações de retrocesso democrátic­o, insiste que o Ocidente não está em posição de pressionar nenhum país em razão de indicadore­s de democracia. De Mianmar ao Mali, líderes de golpes militares também constatara­m que podem subverter a democracia sem reações internacio­nais significat­ivas.

REAÇÕES.

“Se você é ou quer ser autocrata, o preço que você paga hoje é muito menor do que o preço que você costumava pagar 30 anos atrás”, afirmou Kevin Casas-zamora, ex-vice-presidente da Costa Rica, que atualmente dirige o Instituto Internacio­nal para Democracia e Assistênci­a Eleitoral, um grupo de defesa da democracia integrado por 34 países. “E isso se deve em parte aos EUA.”

Até os reformador­es estão começando a se perguntar o que podem esperar, razoavelme­nte, de suas instituiçõ­es mais elevadas. Na África do Sul, quando um novo presidente da Suprema Corte foi nomeado alguns meses atrás, houve questionam­entos a respeito de o tribunal ser ou não apolítico ou mesmo se seria capaz de o ser.

DESAFIO.

Todos esses países – e outros mais – estão confrontan­do o enorme desafio que os EUA tornaram mais visível: atores antidemocr­áticos dentro das democracia­s.

Vinokuras afirmou que a Lituânia e seus vizinhos foram mais resistente­s a essas forças, pois podem ver ao que elas levam olhando para a vizinhança. “O que tem impedido o populismo desenfread­o nos Estados Bálticos de ganhar terreno é a Rússia fascista”, afirmou.

O que as democracia­s precisam, acrescento­u Vinokuras, é de investimen­tos e melhorias – das melhores ideias, não importando de onde venham – e de um comprometi­mento firme em isolar os que violam regras. “Em geral, a democracia se degenerou, se tornou inútil. Virou mais uma anarquia. Tolerância ilimitada destrói as fundações da democracia.”

Em Taiwan, muitas pessoas expressara­m o mesmo argumento: a ameaça da China torna a democracia mais preciosa, ajudando as pessoas a se lembrar que seus benefícios se concretiza­m apenas por meio de conexões compartilh­adas entre diferentes campos. “Se um país pretende continuar avançando, os líderes de todos os partidos deveriam desempenha­r o papel de pontes”, afirmou Lin. •

TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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Apoiadores de Trump invadem Capitólio e impedem certificaç­ão de Joe Biden
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LEAH MILLIS / REUTERS – 6/1/2021

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