O Estado de S. Paulo

Farda não é licença para matar

Julgamento no STM dos militares que fuzilaram dois inocentes no Rio em 2019 aponta para a prevalênci­a do espírito de corpo sobre a necessidad­e de punição exemplar para um crime brutal

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Começou mal no Superior Tribunal Militar (STM) o julgamento dos oito militares do Exército que fuzilaram dois homens inocentes em Guadalupe, zona norte da cidade do Rio, durante a intervençã­o federal na segurança pública do Estado, em 7 de abril de 2019. Conhecidos os votos dos ministros relator e revisor do caso na Corte, o que se tem até o momento é a prevalênci­a do espírito de corpo sobre a imperiosa necessidad­e de punir um crime brutal com o máximo rigor.

Na ocasião, convém recordar, uma patrulha comandada pelo tenente Ítalo Nunes disparou nada menos que 257 tiros de fuzil na direção do carro em que viajavam o músico Evaldo Rosa, sua mulher, seu sogro, o filho menor do casal e uma amiga – todos a caminho de um chá de bebê. Diante do desespero da família ao constatar que Evaldo fora atingido pela saraivada de balas, Luciano Macedo, um catador de reciclávei­s que trabalhava no local, correu em socorro das vítimas e também foi morto.

Tão bárbaro foi o crime – revelador da temeridade que é dar às Forças Armadas a missão de servir como polícia em ações de segurança pública – que, em 2021, a Justiça Militar de primeira instância condenou o tenente Nunes a 31 anos e 6 meses de prisão. Seus sete subordinad­os foram condenados a pena um pouco menor: 28 anos de cadeia cada um. Todos em regime fechado. O advogado dos réus recorreu, alegando que os militares agiram em “legítima defesa”, e o caso chegou ao STM.

Em Brasília, o ministro relator, Carlos

Augusto Oliveira, acolheu o argumento da defesa. O ministro votou pela absolvição dos réus pela morte de Evaldo Rosa e pela desclassif­icação de homicídio doloso para homicídio culposo no caso de Luciano Macedo, o que reduziu drasticame­nte as penas impostas ao tenente Nunes (3 anos e 7 meses de prisão) e aos seus subordinad­os (3 anos de prisão) – e todos em regime aberto. O voto do relator foi seguido pelo ministro revisor, José Coêlho Ferreira.

A versão segundo a qual os militares comandados pelo tenente Nunes não tiveram a intenção de matar Evaldo e Luciano chega a ser ofensiva à inteligênc­ia alheia, à memória das vítimas e aos sentimento­s de seus familiares. Uma tempestade de chumbo na direção de um carro – dos 257 tiros de fuzil, 80 atingiram o veículo – não se presta à advertênci­a nem à defesa, sobretudo quando se sabe que do carro da família não partiu tiro algum.

Evaldo e Luciano, segundo os dois ministros do STM que votaram até agora, foram atingidos no momento em que os militares trocavam tiros com criminosos, após tentarem impedir um assalto. “Infelizmen­te, durante o embate com os assaltante­s, um dos projéteis atingiu o veículo do sr. Evaldo Rosa, causando uma das lesões que pode ter o levado à morte naquele instante”, disse o ministro relator em seu voto. O carro, então, teria parado e uma segunda rajada de balas foi disparada, desta vez matando Luciano Macedo.

A perícia constatou que Evaldo Rosa recebeu nove tiros de fuzil. Mas, para o relator do processo no STM, a causa da morte do músico teria sido o primeiro tiro – disparado, portanto, no contexto da “legítima defesa” durante a suposta retaliação aos assaltante­s. Nesse sentido, o magistrado chegou à conclusão que acusar os militares por homicídio doloso seria um “crime impossível”, haja vista que Evaldo já estaria morto quando os militares abriram fogo pela segunda vez e, ao fim e ao cabo, atingiram o catador de reciclávei­s, sem a intenção de matá-lo.

Roga-se aos demais ministros do STM que revertam esse entendimen­to que, a um só tempo, desmoraliz­a a Justiça Militar e impinge mais sofrimento aos familiares das vítimas. Na prática, está-se tratando Evaldo e Luciano como dois azarados. O desdém com que suas vidas foram tratadas por dois ministros da mais alta instância da Justiça Militar se desvela como espécie de punição post mortem, simplesmen­te por estarem “no lugar errado, na hora errada”.

A prevalecer a impunidade, os brasileiro­s terão razão de sobra para sentir medo sempre que cruzarem o caminho de uma patrulha de militares.l

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