O Estado de S. Paulo

Falas do presidente podem ofuscar brilho do País no G-20

- TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Acúpula será apenas em novembro, mas as reuniões já começaram. Os chancelere­s chegaram ao Rio no dia 21 para o início da presidênci­a do Brasil à frente do G-20, grupo intergover­namental de debates para países que representa­m mais de 80% do PIB global. Os ministros das Finanças e presidente­s dos bancos centrais tiveram seu debate em São Paulo, dias 28 e 29. O presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, pretende usar seu ano no comando do G-20 para convencer o mundo da promessa que mais repete: “O Brasil voltou”.

Nona maior economia do mundo, o Brasil passou os quatro anos anteriores à posse de Lula como uma espécie de pária internacio­nal. Seu antecessor, o populista de extrema direita Jair Bolsonaro, permitiu a exploração destrutiva da floresta amazônica e alinhou-se a autocratas. Disse aos brasileiro­s para “deixar de ser maricas” durante a pandemia, os estimulou a tomar hidroxiclo­roquina, um remédio contra a malária, e associou as vacinas à aids (não há relação entre elas). Bolsonaro fez poucas viagens internacio­nais e desistiu de receber a COP-25, cúpula da ONU sobre o clima.

Depois de governar de 2003 a 2010, o primeiro ano do terceiro mandato de Lula tem sido, principalm­ente, um repúdio às conspiraçõ­es e à insularida­de. Ele já fez 27 viagens ao exterior, mais do que Bolsonaro durante todo o seu governo, incluindo visitas ao G-7, no Japão, à Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, e visitas de destaque a Washington e Pequim.

As relações com os EUA melhoraram, ainda que mais na base da boa vontade do que de uma cooperação substancia­l. Lula e Joe Biden se aproximara­m por causa dos ataques a edifícios públicos promovidos por eleitores de seus antecessor­es, e também da sua defesa dos direitos trabalhist­as. Autoridade­s brasileira­s desejam imitar a política industrial de Biden.

Uma retomada econômica após uma década de estagnação deu a Lula mais margem. Inicialmen­te, os analistas previram um cresciment­o do PIB de apenas 0,8% em 2023, ano em que assumiu a presidênci­a. Números oficiais mostraram que o cresciment­o foi de 2,9%.

É provável que esse cresciment­o enfraqueça em 2024 por causa de uma safra fraca, mas Elijah Oliveros-Rosen, da agência de classifica­ção S&P, acredita que a posição do Brasil é relativame­nte sólida para se alcançar um bom desempenho nesta década. Recentes reformas estruturai­s, incluindo do sistema tributário, estão estimuland­o o investimen­to.

ENERGIA. É provável que o Brasil seja beneficiad­o com a transição energética. Tecnologia­s sustentáve­is estão chegando da China, bem como o dinheiro, investido em empreendim­entos que vão da infraestru­tura de telecomuni­cações até a mineração e a geração de energia hidrelétri­ca. Segundo a OCDE, clube de países ricos, o Brasil foi o segundo maior destino mundial do investimen­to estrangeir­o direto no primeiro semestre de 2023, o período mais recente para o qual há dados disponívei­s.

E o retorno de Lula trouxe avanços naquela que é provavelme­nte a maior responsabi­lidade global do Brasil, a proteção da floresta amazônica. O desmatamen­to caiu pela metade em 2023, se comparado a 2022. O Brasil buscará capitaliza­r nesse sucesso quando receber a COP-30, no ano que vem, em Belém (embora os esforços para transforma­r o País em um grande exportador de petróleo devam enfraquece­r suas credenciai­s).

Mas Lula sabotou os sucessos de seu governo com comentário­s improvisad­os, e um ingênuo desejo de parecer próximo tanto de autocratas quanto de democratas. Pouco antes da reunião no Rio, Lula visitou o Egito e a Etiópia. Os dois países entraram recentemen­te para o Brics e Lula estava promovendo o Brasil como líder do Sul Global. Mas foi a sua fala incendiári­a em Adis-Abeba, no dia 19, que ganhou as manchetes. “O que está acontecend­o na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico”, disse ele, acrescenta­ndo equivocada­mente: “Aliás, existiu, quando Hitler resolveu matar os judeus”.

Israel imediatame­nte declarou Lula persona non grata e convocou o embaixador do Brasil ao Museu do Holocausto, em Jerusalém, para ser repreendid­o. O Hamas elogiou os comentário­s como “fidedignos”.

Mas ele se mostra muito menos disposto a julgar outros países. Na mesma entrevista, ao ser indagado sobre Alexei Navalni, líder da oposição russa que morreu no dia 1, ele desconvers­ou. “Por que a pressa em acusar alguém? Um cidadão morreu na prisão. Não sei se ele estava doente ou tinha algum problema.”

Não foi a primeira demonstraç­ão de solidaried­ade de Lula ao regime de Putin. Ele culpou a Ucrânia por ser invadida pela Rússia. Em setembro, disse que Putin não poderia ser detido se participas­se da cúpula do G-20, mas depois recuou (um mandado do Tribunal Penal Internacio­nal obrigaria os tribunais brasileiro­s a detê-lo). Sua atitude difere pouco da de seu antecessor, que visitou Putin uma semana antes de a Rússia invadir a Ucrânia. O Brasil se tornou o maior comprador mundial do diesel russo.

A interpreta­ção mais generosa diz que comentário­s desse tipo são um recurso cínico para mobilizar a base esquerdist­a do PT. Mesmo se estiver funcionand­o, há efeitos colaterais graves. Além de irritar os aliados ocidentais, Lula criou uma plataforma comum para reunir a direita e os centristas isolados no Brasil.

No dia 25, Bolsonaro reuniu apoiadores em uma manifestaç­ão em São Paulo contra a investigaç­ão de sua participaç­ão nos eventos de 8 de janeiro de 2023, quando seus eleitores tentaram reverter o resultado da eleição presidenci­al. Bolsonaro e milhares de seus seguidores, muitos deles evangélico­s que defendem Israel, foram à manifestaç­ão envoltos em bandeiras israelense­s. Senadores e congressis­tas que tentavam evitar uma associação com Bolsonaro se sentiram motivados a participar na esteira dos comentário­s de Lula.

Essas inconsistê­ncias trazem o risco de enfraquece­r o efeito geral da política externa de Lula, diz Rubens Ricupero, ex-embaixador brasileiro. Lula quer que o Brasil seja todas as coisas para todas as pessoas: amigo do Ocidente e líder do Sul Global, defensor do meio ambiente e potência global do petróleo, defensor da paz e aliado dos autocratas. O Brasil pode estar de volta, mas está desempenha­ndo no cenário global um papel muito mais ambíguo do que deveria.

Inconsistê­ncias no discurso de Lula trazem o risco de enfraquece­r o efeito geral da política externa do Brasil

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