Petróleo vira arma na guerra entre Milei e governadores e expõe fissuras no governo
Disputa envolvendo verba bilionária, que ganhou adesão de líderes de direita e de esquerda, deve chegar à Suprema Corte
A guerra declarada entre o presidente, Javier Milei, e os governadores da Argentina ganhou novos contornos nos últimos dias, com o petróleo e o gás virando armas das províncias produtoras, especialmente da região da Patagônia. O governador de Chubut, segunda maior província produtora, ameaçou cortar o fornecimento caso o governo não liberasse uma verba retida. A disputa, que ganhou adesão de governadores de direita e de esquerda, deve chegar à Suprema Corte.
Esse foi um novo episódio dos embates do presidente com os governadores que deveriam constituir sua base. O conflito começou após as primeiras medidas que retiraram verbas das províncias e se agravou depois que Milei saiu em uma caça às bruxas contra deputados e governadores que não apoiaram sua Lei Ônibus, que foi derrubada no Congresso. Ao chamá-los de “traidores”, Milei criou uma fissura que coloca em dúvida a sua governabilidade.
No dia 23, o governador de Chubut, Ignácio Torres, denunciou que o governo federal havia retido ilegalmente mais de 13,5 bilhões de pesos da verba de participação da província. “Se não cumprirem a Constituição e não enviarem recursos, Chubut não entregará seu petróleo e gás”, ameaçou Torres, em carta assinada por seus vizinhos patagônios de Río Negro, Santa Cruz, Neuquén, Terra do Fogo e La Pampa.
A Patagônia concentra a maior produção de petróleo e gás do país. Se concretizada, a ameaça, que poderia ser considerada inconstitucional, segundo juristas, poderia encarecer ainda mais os combustíveis – que já estão sob pressão da inflação e da liberação de preços promovida por Milei em janeiro. O resultado político promete ser dramático.
O governo respondeu que os valores haviam sido retidos para pagar uma dívida da província com um fundo de desenvolvimento. Milei, porém, subiu o tom e chamou os governadores de “degenerados fiscais”. Os patagônios acusam a Casa Rosada de puni-los pela rejeição da Lei Ônibus.
MACRI. A briga não ficou restrita à região. Oito governadores do Juntos pela Mudança – coalizão de Mauricio Macri que forma a base de Milei – assinaram um documento endossando as reclamações de Chubut, entre eles nomes de peso, como Jorge Macri, prefeito de Buenos Aires, e Alfredo Cornejo, governador de Mendoza, outra grande produtora de hidrocarbonetos. O kirchnerista Axel Kicillof, da Província de Buenos Aires, também apoiou.
Os patagônios abaixaram o tom na quarta-feira e voltaram atrás na ameaça de cortar o fornecimento depois que uma decisão da Justiça deu razão a Torres. Os governadores deram a questão por resolvida, mas exigiram um diálogo com Milei que, segundo eles, não se deu ao trabalho de entrar em contato durante a crise.
O governo, no entanto, já avisou que vai recorrer da decisão e planeja usar um recurso chamado per saltum para levar a disputa direto para a Suprema Corte da Argentina.
POBREZA. A retenção dos recursos de Chubut se torna mais dramática ao ser somada ao corte a quase zero das transferências não obrigatórias do governo às províncias, bem como o fim dos subsídios aos transportes públicos do interior.
Em janeiro, ao menos 14 províncias não receberam repasses. Chubut foi uma delas, junto com as demais da Patagônia. A coparticipação é uma transferência obrigatória, mas a regra do fundo permite a retenção para o pagamento de dívidas. Com isso, a província se vê sufocada, com poucos recursos para investimento. A situação se repete em quase todas as províncias argentinas, com reclamações de falta de fundos para áreas sensíveis como educação e saúde.
Toda essa situação tem origem na ambiciosa meta de déficit zero do governo Milei. O presidente pretende, ainda este ano, equilibrar as contas com objetivo de obter um superávit. No entanto, o método tem provocado intensos embates com sua base.
A meta recessiva já provocou uma erosão dos salários dos argentinos, derrubou o consumo, retirou subsídios, aumentou contas básicas e segue cortando recursos das províncias. O resultado é um aumento da pobreza, já projetada em 57%, segundo a Universidade Católica Argentina (UCA). Um impacto que se vê muito mais fora da capital Buenos Aires.
REGRA. Desde que foram anunciadas as medidas que cortavam recursos das províncias, analistas e economistas alertavam que haveria conflitos com os governadores, pois as províncias são dependentes dos recursos repassados, especialmente as mais pobres. Dias depois, o governo se reuniu com os governadores, mas o diálogo durou poucos dias.
A coparticipação historicamente já é alvo de um embate na Argentina. Pela regra, o governo concentra a arrecadação das as províncias e as distribui de acordo com uma porcentagem definida por lei. “As províncias dependem do governo nacional”, explica o cientista político do Observatório Pulsar da Universidade de Buenos Aires (UBA) Facundo Cruz. O embate gira em torno do quanto é justa essa distribuição.
“A tensão é sobretudo uma discussão por recursos e sobre quem paga os custos e quem recebe os benefícios. A estratégia de Milei foi reter os benefícios e transportar os custos às províncias. E é aí que se dá essa tensão com vários governadores”, diz o cientista político.
O jogo, porém, é arriscado, já que Milei não tem base política. Dos 257 assentos no Congresso, seu partido tem apenas 38. Nas 24 províncias argentinas, o partido de Milei não elegeu nenhum governador. Esses dados fazem seu governo dependente da aliança frágil que costurou com todos os governadores com quem agora ele está guerra.
Na Argentina, governadores, prefeitos e demais políticos locais têm muita força política e costumam ser mais populares que o governo nacional. “O ponto de partida para entender tudo isso é saber que os governadores na Argentina têm autonomia política plena, autonomia administrativa restrita e autonomia financeira bastante limitada”, afirma Cruz.
Por autonomia política, o analista se refere ao poder de mudar as regras do jogo, incluindo as eleitorais. Governadores têm o poder de definir datas e formatos das eleições locais – de forma que lhes convenha – e construir alianças.
Já Milei conta com uma paciência popular muito curta, que já deu seus primeiros sinais de esgotamento. “Na Argentina, se há alguma certeza, é que um presidente não pode governar o país sem que os governadores o acompanhem. E, até hoje, desde o começo do seu mandato, o Liberdade Avança não conta com o apoio de nenhum dos 24 governadores”, afirma o cientista político.
Revanche
Províncias da Patagônia acusam a Casa Rosada de puni-las pela derrota da Lei Ônibus de Milei