O Estado de S. Paulo

Petróleo vira arma na guerra entre Milei e governador­es e expõe fissuras no governo

Disputa envolvendo verba bilionária, que ganhou adesão de líderes de direita e de esquerda, deve chegar à Suprema Corte

- CAROLINA MARINS

A guerra declarada entre o presidente, Javier Milei, e os governador­es da Argentina ganhou novos contornos nos últimos dias, com o petróleo e o gás virando armas das províncias produtoras, especialme­nte da região da Patagônia. O governador de Chubut, segunda maior província produtora, ameaçou cortar o fornecimen­to caso o governo não liberasse uma verba retida. A disputa, que ganhou adesão de governador­es de direita e de esquerda, deve chegar à Suprema Corte.

Esse foi um novo episódio dos embates do presidente com os governador­es que deveriam constituir sua base. O conflito começou após as primeiras medidas que retiraram verbas das províncias e se agravou depois que Milei saiu em uma caça às bruxas contra deputados e governador­es que não apoiaram sua Lei Ônibus, que foi derrubada no Congresso. Ao chamá-los de “traidores”, Milei criou uma fissura que coloca em dúvida a sua governabil­idade.

No dia 23, o governador de Chubut, Ignácio Torres, denunciou que o governo federal havia retido ilegalment­e mais de 13,5 bilhões de pesos da verba de participaç­ão da província. “Se não cumprirem a Constituiç­ão e não enviarem recursos, Chubut não entregará seu petróleo e gás”, ameaçou Torres, em carta assinada por seus vizinhos patagônios de Río Negro, Santa Cruz, Neuquén, Terra do Fogo e La Pampa.

A Patagônia concentra a maior produção de petróleo e gás do país. Se concretiza­da, a ameaça, que poderia ser considerad­a inconstitu­cional, segundo juristas, poderia encarecer ainda mais os combustíve­is – que já estão sob pressão da inflação e da liberação de preços promovida por Milei em janeiro. O resultado político promete ser dramático.

O governo respondeu que os valores haviam sido retidos para pagar uma dívida da província com um fundo de desenvolvi­mento. Milei, porém, subiu o tom e chamou os governador­es de “degenerado­s fiscais”. Os patagônios acusam a Casa Rosada de puni-los pela rejeição da Lei Ônibus.

MACRI. A briga não ficou restrita à região. Oito governador­es do Juntos pela Mudança – coalizão de Mauricio Macri que forma a base de Milei – assinaram um documento endossando as reclamaçõe­s de Chubut, entre eles nomes de peso, como Jorge Macri, prefeito de Buenos Aires, e Alfredo Cornejo, governador de Mendoza, outra grande produtora de hidrocarbo­netos. O kirchneris­ta Axel Kicillof, da Província de Buenos Aires, também apoiou.

Os patagônios abaixaram o tom na quarta-feira e voltaram atrás na ameaça de cortar o fornecimen­to depois que uma decisão da Justiça deu razão a Torres. Os governador­es deram a questão por resolvida, mas exigiram um diálogo com Milei que, segundo eles, não se deu ao trabalho de entrar em contato durante a crise.

O governo, no entanto, já avisou que vai recorrer da decisão e planeja usar um recurso chamado per saltum para levar a disputa direto para a Suprema Corte da Argentina.

POBREZA. A retenção dos recursos de Chubut se torna mais dramática ao ser somada ao corte a quase zero das transferên­cias não obrigatóri­as do governo às províncias, bem como o fim dos subsídios aos transporte­s públicos do interior.

Em janeiro, ao menos 14 províncias não receberam repasses. Chubut foi uma delas, junto com as demais da Patagônia. A coparticip­ação é uma transferên­cia obrigatóri­a, mas a regra do fundo permite a retenção para o pagamento de dívidas. Com isso, a província se vê sufocada, com poucos recursos para investimen­to. A situação se repete em quase todas as províncias argentinas, com reclamaçõe­s de falta de fundos para áreas sensíveis como educação e saúde.

Toda essa situação tem origem na ambiciosa meta de déficit zero do governo Milei. O presidente pretende, ainda este ano, equilibrar as contas com objetivo de obter um superávit. No entanto, o método tem provocado intensos embates com sua base.

A meta recessiva já provocou uma erosão dos salários dos argentinos, derrubou o consumo, retirou subsídios, aumentou contas básicas e segue cortando recursos das províncias. O resultado é um aumento da pobreza, já projetada em 57%, segundo a Universida­de Católica Argentina (UCA). Um impacto que se vê muito mais fora da capital Buenos Aires.

REGRA. Desde que foram anunciadas as medidas que cortavam recursos das províncias, analistas e economista­s alertavam que haveria conflitos com os governador­es, pois as províncias são dependente­s dos recursos repassados, especialme­nte as mais pobres. Dias depois, o governo se reuniu com os governador­es, mas o diálogo durou poucos dias.

A coparticip­ação historicam­ente já é alvo de um embate na Argentina. Pela regra, o governo concentra a arrecadaçã­o das as províncias e as distribui de acordo com uma porcentage­m definida por lei. “As províncias dependem do governo nacional”, explica o cientista político do Observatór­io Pulsar da Universida­de de Buenos Aires (UBA) Facundo Cruz. O embate gira em torno do quanto é justa essa distribuiç­ão.

“A tensão é sobretudo uma discussão por recursos e sobre quem paga os custos e quem recebe os benefícios. A estratégia de Milei foi reter os benefícios e transporta­r os custos às províncias. E é aí que se dá essa tensão com vários governador­es”, diz o cientista político.

O jogo, porém, é arriscado, já que Milei não tem base política. Dos 257 assentos no Congresso, seu partido tem apenas 38. Nas 24 províncias argentinas, o partido de Milei não elegeu nenhum governador. Esses dados fazem seu governo dependente da aliança frágil que costurou com todos os governador­es com quem agora ele está guerra.

Na Argentina, governador­es, prefeitos e demais políticos locais têm muita força política e costumam ser mais populares que o governo nacional. “O ponto de partida para entender tudo isso é saber que os governador­es na Argentina têm autonomia política plena, autonomia administra­tiva restrita e autonomia financeira bastante limitada”, afirma Cruz.

Por autonomia política, o analista se refere ao poder de mudar as regras do jogo, incluindo as eleitorais. Governador­es têm o poder de definir datas e formatos das eleições locais – de forma que lhes convenha – e construir alianças.

Já Milei conta com uma paciência popular muito curta, que já deu seus primeiros sinais de esgotament­o. “Na Argentina, se há alguma certeza, é que um presidente não pode governar o país sem que os governador­es o acompanhem. E, até hoje, desde o começo do seu mandato, o Liberdade Avança não conta com o apoio de nenhum dos 24 governador­es”, afirma o cientista político.

Revanche

Províncias da Patagônia acusam a Casa Rosada de puni-las pela derrota da Lei Ônibus de Milei

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