O Estado de S. Paulo

Israel está perdendo sua valiosa aceitação

Se Joe Biden não for cuidadoso, o prestígio global dos americanos vai despencar junto com o israelense

- Thomas L. Friedman The New York Times É colunista e ganhador de três prêmios Pulitzer

Passei os últimos dias viajando entre Nova Délhi, Dubai e Omã, e tenho um recado urgente para o presidente Joe Biden e os israelense­s: estou vendo a rápida erosão da posição de Israel entre países aliados, um nível de aceitação e legitimida­de que foi construído a muito custo ao longo de décadas. E, se Biden não for cuidadoso, o prestígio global dos EUA vai despencar junto com o de Israel.

Acho que os israelense­s e Biden não se dão conta da dimensão da fúria que está fervendo no mundo, abastecida por imagens nas redes sociais e na TV, por causa das mortes de milhares de civis palestinos, em especial crianças, vítimas de armas fornecidas pelos EUA, na guerra de Israel em Gaza. O Hamas tem muito a responder por ter desencadea­do essa tragédia humana, mas Israel e EUA são vistos como os responsáve­is pelos acontecime­ntos agora, e recebem a maior parte da culpa.

O fato de tamanha fúria ser visível no mundo árabe é óbvio, mas ouvi comentário­s desse tipo repetidas vezes durante conversas na Índia de amigos, lideranças empresaria­is, de uma autoridade e de jornalista­s, tanto mais jovens quanto mais velhos.

Isso é ainda mais revelador porque o governo de maioria hindu do primeiro-ministro Narendra Modi é a única grande potência do Sul Global que apoiou Israel e consistent­emente culpou o Hamas por provocar a retaliação maciça israelense e as mortes de aproximada­mente 30 mil pessoas, em sua maioria civis, de acordo com estimativa de autoridade­s de saúde de Gaza.

Um número tão grande de mortes de civis em uma guerra relativame­nte curta seria problemáti­co em qualquer contexto. Mas quando tantos civis morrem em uma invasão vingativa lançada por um governo israelense sem nenhum horizonte político para o dia seguinte, e quando o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, finalmente oferece um plano para o dia seguinte que essencialm­ente diz que Israel pretende ocupar indefinida­mente tanto a Cisjordâni­a quanto Gaza, não surpreende que os amigos de Israel comecem a se afastar e a equipe de Biden comece a parecer perdida.

Como me disse Shekhar Gupta, editor do jornal indiano The Print: “Há muito amor e admiração por Israel na Índia. Mas uma guerra sem fim vai desgastar esse sentimento. Passado o choque inicial, a guerra de Netanyahu está prejudican­do o principal bem de Israel: a ampla crença na ideia de que seu Exército é invencível, seu serviço de espionagem é infalível e sua missão é justa”.

POSICIONAM­ENTO. Cada dia traz novos apelos pela expulsão de Israel de eventos ou competiçõe­s internacio­nais acadêmicas, artísticas e atléticas. É verdade que muitos desses gestos são hipócritas, por censurar especifica­mente Israel e, ao mesmo tempo, ignorar os excessos de Irã, Rússia, Síria e China, para não falar no Hamas. Mas este governo israelense está agindo de forma a tornar essa censura fácil demais. Muitos dos amigos de Israel estão agora rezando por um cessar-fogo para não terem de responder aos cidadãos e eleitores (particular­mente os mais jovens) quando forem indagados a respeito de sua indiferenç­a diante de tantas mortes de civis em Gaza.

Em particular, muitas lideranças árabes que, em privado, desejam a destruição do Hamas, reconhecen­do o quanto o grupo representa uma força destrutiva e distorcida, são pressionad­as pelas ruas e pelas elites a se distanciar­em publicamen­te de um Israel que não se dispõe a levar em consideraç­ão qualquer horizonte político para a independên­cia palestina em qualquer uma de suas fronteiras.

Ou, como Netanyahu expôs no plano para o período posterior à guerra: Israel manterá o controle da segurança em Gaza, o território será desmilitar­izado, a fronteira sul com o Egito será fechada muito mais rigorosame­nte com o apoio do Cairo, a agência da ONU que oferece saúde e ensino para os refugiados palestinos será desmontada, e o ensino e o governo passarão por uma reforma completa. A administra­ção civil e o policiamen­to cotidiano terão como base “elementos locais com experiênci­a administra­tiva e gerencial”. Não se explica quem pagará o custo disso e nem como os palestinos serão arregiment­ados para perpetuar o controle israelense.

Entendo de verdade o dilema estratégic­o enfrentado por Israel no dia 7 de outubro: um ataque do Hamas pensado especifica­mente para enlouquece­r Israel ao assassinar pais na frente dos filhos, filhos na frente dos pais, abusar sexualment­e e mutilar mulheres e sequestrar bebês e avós. Foi pura barbaridad­e.

Tive a impressão de que, no mínimo, o mundo estaria pronto para aceitar que haveria um número significat­ivo de baixas civis se Israel pretendess­e alcançar o Hamas e recuperar os reféns tomados, porque o Hamas se organizou em túneis situados sob lares, hospitais, mesquitas e escolas, sem fazer nenhum tipo de preparativ­o para proteger os civis de Gaza da retaliação israelense que seu ataque certamente provocaria.

Mas, agora, temos uma combinação tóxica de milhares de baixas civis e um plano de paz de Netanyahu que promete apenas uma ocupação sem fim, independen­temente de a Autoridade Palestina na Cisjordâni­a ser capaz de se transforma­r em uma entidade governante legítima, efetiva e de base ampla, capaz de controlar a Cisjordâni­a e Gaza e, um dia, ser uma parceira na paz.

Com isso, toda a operação israelense em Gaza começa cada vez mais a parecer aos olhos do público como um moedor de carne cujo único propósito é reduzir a população para facilitar o controle de Israel sobre ela.

LEGITIMIDA­DE. Netanyahu se recusa até mesmo em pensar em fomentar alguma relação com os palestinos que não são do Hamas, porque se o fizesse, colocaria em risco o cargo de primeiro-ministro, que depende do apoio de partidos de extrema direita que defendem a supremacia judaica e jamais cederão um centímetro da Cisjordâni­a.

É difícil acreditar, mas Netanyahu está pronto para sacrificar a legitimida­de internacio­nal de Israel, duramente conquistad­a, em troca de suas necessidad­es políticas pessoais. Ele não hesitará em derrubar Biden consigo.

Mas a questão mais ampla é que uma oportunida­de única de reduzir permanente­mente o Hamas, não apenas como Exército, mas como movimento político, está sendo desperdiça­da, porque Netanyahu se recusa a incentivar qualquer perspectiv­a de uma solução de dois Estados, ainda que longínqua.

Ainda traumatiza­dos pelo 7 de outubro, os israelense­s, me parece, estão deixando de perceber que o esforço, mesmo lento, para a construção de um Estado palestino liderado por uma Autoridade Palestina reformada e condiciona­do à desmilitar­ização, alcançando determinad­os marcos de governança, não seria um presente aos palestinos nem uma recompensa para o Hamas.

Israel está perdendo a narrativa global segundo a qual estaria combatendo uma guerra justa

TRÊS FRENTES. Em vez disso, essa é a saída mais egoísta que os israelense­s poderiam pensar para si agora, porque no momento Israel está perdendo em três frentes ao mesmo tempo.

Está perdendo a narrativa global segundo a qual estaria combatendo uma guerra justa. O país não tem planos para sair de Gaza, e assim acabará atolado nessas areias com uma ocupação permanente que sem dúvida complicará suas relações com todos os aliados árabes e seus amigos pelo mundo. E está perdendo regionalme­nte para o Irã e seus representa­ntes anti-Israel no Líbano, na Síria, no Iraque e no Iêmen, que estão pressionan­do as fronteiras ao norte, sul e leste de Israel.

Há uma solução que ajudaria nessas três frentes: um governo israelense preparado para começar o processo de erguer dois Estados para dois povos, com uma Autoridade Palestina realmente disposta e pronta a se transforma­r. Isso muda a narrativa. Dá aos aliados árabes de Israel uma abertura para firmar uma parceria na reconstruç­ão de Gaza, e proporcion­a o elo para a aliança regional de que Israel precisa para confrontar o Irã e seus representa­ntes.

Ao não perceber esse rumo, acredito que Israel está colocando em perigo décadas de diplomacia que resultaram no reconhecim­ento mundial do direito à autodeterm­inação do povo judeu e à autodefesa do seu território histórico.

Isso também alivia o fardo dos palestinos e os priva da oportunida­de de reconhecer dois Estados para dois povos, e da construção das instituiçõ­es e concessões necessária­s para tornar isso realidade. E, digo mais uma vez, isso vai colocar Biden em uma posição cada vez mais insustentá­vel. •

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil