A conta de Biden
Aambivalência é parte da condição humana. Na geopolítica, a ambiguidade estratégica pode evitar danos de longo prazo em cenários complexos nos quais há muitos ganhos e perdas em jogo. Muitas circunstâncias, porém, exigem posições firmes. Joe Biden pagou nesta semana, nas prévias de Michigan, o custo de não fazer escolhas.
Esse custo pode se multiplicar na Superterça, quando 15 Estados e um território realizam prévias. Mais de 100 mil eleitores democratas de Michigan, 13% dos participantes, fizeram um voto de protesto contra Biden por seu apoio a Israel. Esse apoio se expressa no envio de porta-aviões, armas, ajuda militar anual de US$ 3,8 bilhões e três vetos no Conselho de Segurança a resoluções que exigiam cessar-fogo em Gaza.
O movimento é liderado por Rashida Talib, deputada de origem palestina de Michigan, que tem o maior eleitorado árabe dos EUA, 2,8%. Ele já se alastrou para outros filiados do partido, como a juventude e a esquerda, indignadas com a carnificina em Gaza. Michigan é um dos Estados-chave que definem a eleição. Em 2016, ele elegeu Donald Trump. Em 2020, Biden. O maior receio da campanha democrata é que o movimento se espalhe, comprometendo suas chances.
O presidente já tem dificuldades com negros e hispânicos de baixa renda, que sofrem com inflação e juros altos, que encarecem a hipoteca e o aluguel. Em uma disputa apertada, pode ser uma combinação fatal.
ALIANÇA. A proteção de Biden a Israel não é suficiente para muitos judeus e para o eleitorado evangélico conservador, que apoia o Estado israelense. A histórica preferência dos judeus pelos democratas foi abandonada no governo de Barack Obama, que fez o acordo nuclear com o Irã, principal inimigo de Israel.
Trump capitalizou sobre a aliança entre evangélicos e judeus, recompensando-os com um apoio incondicional a Israel e a ruptura do acordo com o Irã. Em contraste, Biden pressiona o premiê, Benjamin Netanyahu,
a conter a morte de civis em Gaza e a aceitar a criação da Palestina. Netanyahu não esconde sua preferência por Trump. Ou seja, ao tentar alegrar a todos, Biden frustra a todos e perde votos.
A última vez que os EUA ameaçaram retirar a ajuda militar a Israel foi no governo do republicano George Bush (pai), em 1991. Depois de liderar uma coalizão de 30 países, incluindo árabes, para expulsar os iraquianos do Kuwait, Bush lançou um processo de paz visando à criação de um Estado palestino.
O então premiê Yitzhak Shamir, que havia participado de células terroristas judaicas antes da criação de Israel, em 1948, resistiu. Bush mostrou a carta da ajuda financeira e Shamir aceitou participar da Conferência
de Madri, com o líder palestino Yasser Arafat. Shamir era do Likud, partido de Netanyahu, na época seu portavoz. Diante das ameaças do lobby judaico, o então secretário de Estado, James Baker, teria reagido: “F…m-se Eles nem votaram em nós!” Hoje, o raciocínio serviria para Biden.
AMBIGUIDADE. A ambiguidade estratégica descreve a política dos EUA para Taiwan. O objetivo é manter a China na dúvida sobre se os americanos defenderiam a ilha, criando um efeito dissuasório. Biden rompeu essa ambiguidade em 2022, em entrevista a Scott Pelley, na CBS News. “Os EUA defenderiam a ilha?”, Pelley perguntou. “Sim, se houver um ataque”, respondeu Biden.
Mas, se a China não invadiu Taiwan, a Rússia, em contrapartida, ocupa parte da Ucrânia, que não é protegida pela mesma garantia. Ciente disso, o presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou em Paris: “Não há consenso para o envio de tropas. Mas faremos de tudo para que a Rússia não vença”. A lógica é simples. Se a Rússia vencer, continuará seu expansionismo. Para um soldado europeu, é melhor combater os russos na Ucrânia do que no próprio país.
Mesmo uma ameaça tão condicionada como essa foi logo descartada pelos dois outros líderes mais importantes da Europa: o chanceler alemão, Olaf Scholz, e o premiê britânico, Rishi Sunak. Praticamente todo o efeito dissuasivo da fala de Macron se perdeu. Ainda assim, Vladimir Putin respondeu: “Tudo isso ameaça o mundo com um conflito nuclear.”
Há uma diferença entre ditaduras e democracias. Ditadores controlam a informação e podem se contradizer, descumprir promessas e ameaças quantas vezes quiserem. Nas democracias, os governantes prestam contas aos eleitores. Por isso, a ambiguidade precisa ser usada com parcimônia. Democratas têm de fazer escolhas. E isso exige lucidez, determinação, coragem e liderança. •
Governos democratas têm de fazer escolhas. E isso exige lucidez, determinação, coragem e liderança