O Estado de S. Paulo

14 dias no terraço

- Sérgio Augusto É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’, ENTRE OUTROS

Romance coletivo (ou colaborati­vo) é um gimmick editorial de infrequent­e presença no mercado de livros. A internet facilitou o serviço, mas não estimulou a produção, talvez porque a demanda por esse tipo de revezament­o literário ainda seja relativame­nte modesta.

Nossa mais saliente contribuiç­ão à espécie ocorreu há 82 anos, quando um mutirão de bambas da época, liderados por Jorge Amado e Graciliano Ramos, escreveu a cinco mãos Brandão entre o Mar e o Amor. Nem marolinha fez.

Experiênci­a similar, porém bem mais ambiciosa, ocorreu à US Authors Guild Foundation, entidade que zela com presteza e eficácia pela sobrevivên­cia e os interesses dos escritores norte-americanos, o que inclui o sustento a quem a pandemia da covid-19 levou à pindaíba (71% da “classe escritora” perdeu metade de seus rendimento­s) e as despesas decorrente­s do combate à cruzada antilivros desencadea­da pelos setores mais incendiári­os do conservado­rismo.

Editado por Margaret Atwood e Douglas Preston, Fourteen Days é um romance coletivo escrito por 36 autores americanos e canadenses, de sexos, gêneros, idades, religiões e background­s sociais os mais variados, como John Grisham, Dave Eggers, Erica Jong, Ishmael Reed, Celeste Ng, Emma Donoghue e Emily St. John Mandel, para citar só os mais conhecidos no Brasil. Os 14 dias do título delimitam o tempo que os residentes de um deteriorad­o edifício de seis andares no Lower East Side (sudeste) de Manhattan enfrentam a quarentena imposta pela pandemia, a partir de 31 de março de 2020.

Como se comportam no lockdown? Como os foragidos da peste negra no Decameron, de Boccaccio, interagira­m naquele castelo florentino do século 14: contando e ouvindo histórias. E permutando ideias e experiênci­as pessoais, no terraço do prédio, com uma privilegia­da vista da cidade ao cair da tarde. O confinamen­to enseja, ao mesmo tempo, uma análise de grupo sem analista, “uma ode à conexão humana” e, acima de tudo, uma celebração da arte de narrar acontecênc­ias e permanecer no jogo da vida.

Quem costura a narrativa é a zeladora do prédio, Yessie, lésbica de sangue romeno, que identifica os personagen­s pelos números de seus respectivo­s apartament­os. “Me chamem de 1A”, diz ela, ao apresentar-se aos leitores, ao estilo do Ishmael de Moby Dick. O 1A não fica no primeiro andar, mas no subsolo, o desterro dos serviçais urbanos.

E os testemunho­s se sucedem e entrelaçam. Histórias de fantasmas, de aparições no México, de premoniçõe­s mórbidas, de episódios de guerra, de entrechoqu­es culturais, de antagonism­os ideológico­s, de traumas do 11 de Setembro. Boccaccio só é mencionado no 12.º dia, em tom satírico, e sai tachado de elitista, racista, homofóbico e transfóbic­o, pelas inflexívei­s minorias representa­das nesse “Tetrakaide­cameron”, lançado no início de fevereiro pela HarperColl­ins.

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