O Estado de S. Paulo

O teatro ambiental de Lula

A escalada dos incêndios na Amazônia é só mais um indício de que a cenografia de Lula para disfarçar a distância entre as promessas e a ação está em processo acelerado de desmoraliz­ação

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Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, no primeiro quadrimest­re de 2024 os focos de queimadas na Amazônia aumentaram 154% em relação ao mesmo período de 2023. Em todo o País, o aumento foi de 81%.

É verdade que parte desse volume é um efeito colateral da estiagem provocada pelo El Niño. É verdade também que, apesar do aumento dos incêndios, o desmatamen­to na Amazônia em 2023 caiu 50% em relação a 2022. Em geral, o desempenho do atual governo em relação ao meio ambiente é bem melhor que o do anterior. Mas seria preciso um esforço incomum para piorar o legado ambiental – este sim, genuinamen­te “maldito” – de um entusiasma­do antiambien­talista como Jair Bolsonaro.

Ainda assim, no primeiro ano do governo Lula, o desmate no Cerrado aumentou 43%, e os 9 mil km² de desmate na Amazônia ainda deixam o Brasil muito longe da meta de desmatamen­to zero até 2030. E o recorde histórico de incêndios na Amazônia em 2024 – 17.182 focos, quebrando a marca de 16.888 em 2003 – está aí para expor o abismo entre a retórica e a realidade numa área que foi vendida a Deus e ao mundo como uma grife do novo governo.

Lula nunca foi exatamente um entusiasta da causa ambiental, e sua relação com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, nunca foi exatamente um mar de rosas. Mas, como formidável animal político que é, Lula sabe como ninguém farejar votos e loas. A defesa do meio ambiente entrou em cheio nas planilhas de seus marqueteir­os petistas, e o presidente conseguiu passar uma borracha na campanha de difamação contra Marina em 2010. Nas eleições de 2022, Lula foi vendido aos brasileiro­s como uma espécie de herói da floresta e continua a se vender assim nos palcos internacio­nais.

Todo esse teatro teve seus momentos de emoção: Lula conseguiu contratar a realização da COP-30 em 2025 e recebeu a Cúpula da Amazônia em 2023. Com o presidente francês, Emmanuel Macron – aquele que quer fazer terra arrasada do acordo de livre comércio Mercosul-União Europeia para proteger seus agricultor­es –, apareceu saltitando em fotos e promoveu literalmen­te uma pajelança na floresta amazônica. Mas os números não se comoveram. A lua de mel com Macron foi festejada bem longe das comunidade­s yanomamis, onde as mortes em 2023 (363) superaram as 343 do ano de 2022, durante a era bolsonaris­ta, qualificad­a de “genocida” pelos petistas.

O sucateamen­to dos órgãos de fiscalizaç­ão ambiental por Bolsonaro foi catastrófi­co. Mas o Brasil logo descobrirá se a atual greve desses órgãos, que dura desde janeiro, terá um impacto ainda maior. Não é só melhoria salarial. Em carta aberta, os servidores denunciara­m explicitam­ente as contradiçõ­es da gestão petista e a distância entre as promessas e a prática. Já no fim de fevereiro, os autos de infração na Amazônia tinham caído na ordem de 70% a 90%. Não só os criminosos estão agindo impunement­e, como as emissões de licenças para obras de infraestru­tura estão paralisada­s, com imensos custos para a população mais pobre do Brasil.

Em meados do ano passado, Lula deu de ombros à evisceraçã­o dos ministério­s do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas no remelexo ministeria­l feito para aplacar o Centrão. Em fóruns internacio­nais, fala grosso contra os “ricos” e cobra alto o dinheiro para financiar a transição energética. Mas, aqui, o gasoduto de dinheiro público para subsidiar combustíve­is fósseis opera a todo vapor.

Que o governo orgulhosam­ente desenvolvi­mentista manobre para desmoraliz­ar o arcabouço e as metas fiscais que ele mesmo aprovou, não chega a ser surpresa. Já a desmoraliz­ação em áreas especialme­nte caras para a esquerda – sobretudo para uma nova linhagem progressis­ta para quem o meio ambiente é uma prioridade absoluta, do tipo “custe o que custar” – é um pouco mais enigmática. Falta o quê? Competênci­a? Vontade? Talvez ambos?

Invocar a ameaça do ogro Bolsonaro, apelidado de “Nero” nas redes sociais progressis­tas, ainda rende frisson na claque lulista. Mas para o grande público esse expediente cênico começa a perder o viço. Os números desabonado­res continuam a sair, e a epopeia ambiental do demiurgo de Garanhuns assume cada vez mais ares de uma tragédia, e da pior qualidade. •

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