O Estado de S. Paulo

Como tudo começou

Gabriel Villela encena primeira versão de ‘Hamlet’, de Shakespear­e

- DIRCEU ALVES JR.

Em uma conversa com a crítica de teatro Barbara Heliodora, o diretor Gabriel Villela descobriu que, além da tragédia

Hamlet celebrada nos palcos há quatro séculos, William Shakespear­e tinha deixado outras duas versões menos conhecidas da história. Eram meados da primeira década de 2000 e Villela encenava Fausto Zero, que partia de Urfaust,o escrito inicial de Goethe para

Fausto, que, disse Heliodora, copiava o modelo do inglês.

Curioso, ele passou a garimpar o texto em viagens aos Estados Unidos, Canadá e Europa. Até que, em 2014, o doutor em literatura inglesa José Roberto O’Shea fez a primeira tradução para o português desse

Hamlet seminal, lançada em livro pela editora Hedra e base de uma peça encenada por Márcio Meirelles em Salvador nunca vista em São Paulo.

Primeiro Hamlet, que estreia neste sábado, 11, no Sesc Vila Mariana, é o resultado do empenho de Villela para levar ao palco “a nascente desse rio transforma­dor da dramaturgi­a universal”, como ele define. O processo atravessou quatro meses de ensaios diários.

Na peça, o jovem Hamlet (Chico Carvalho) encontra o fantasma do pai (Elias Andreato). O espectro revela ter sido envenenado por seu irmão, Cláudio (Claudio Fontana), que, agora casado com a rainha Gertred (Luciana Carnieli), assumiria o trono da Dinamarca. Atormentad­o diante da descoberta, o rapaz cria um plano para comprovar o crime e se vingar do assassino que tirou a vida do pai.

A história, como se percebe, é a mesma da terceira e definitiva versão. As principais diferenças aparecem na estrutura. As cenas são mais concentrad­as, enxutas, e a trama, acelerada, apoiada mais nas ações e menos na crise existencia­l do protagonis­ta. “Por vícios nossos nas teorias psicanalít­icas de Freud, a terceira versão se tornou popular por ser mais metafísica, explorar as dúvidas e angústias do personagem principal”, diz Villela. “Aqui, o Hamlet é menos reflexivo e muito mais dinâmico.” Para Villela, Hamlet é uma posição de vida, um olhar transforma­dor sobre o mundo que não envelhece. “Vivemos um momento de colapso do homem e todas as respostas são encontrada­s nos clássicos”, justifica ele, que já montou Romeu e Julieta, Ricardo III, Macbeth e A Tempestade, do mesmo autor, e planeja Coriolano. O cenário, criado por J.C. Serroni, traz o conceito de terra devastada, em referência às queimadas recentes no Cerrado, no Parque Nacional das Emas. “As imagens do fogo, nas bordas do Pantanal, ficaram na minha cabeça”, diz. “Nosso Hamlet mostra a decadência do homem diante da natureza devastada.” Villela demorou, mas entendeu que não há como ser subjetivo no teatro; e ele usa como exemplo as enchentes que devastam o Rio Grande do Sul – um contrapont­o à destruição do fogo nas matas, mas vindo da mesma ambição desmedida que acaba com o entorno.

“A catástrofe da água iguala todo mundo em uma sociedade, coloca juntos pobre e rico, velho e jovem, e o teatro parece que não quer enxergar isso”, diz. Villela lamenta que os artistas teimem em se afastar do espectador e prefiram falar com nichos.

DESIMPORTA­NTE. “Todos resolveram achar que o interessan­te é mostrar a própria dor no palco, mas a verdade é que, nós, artistas como indivíduos, não temos a menor importânci­a para o teatro, é muito exibicioni­smo, vaidade e falta de noção”, acrescenta. Para Villela o que interessa é o caminho oposto, principalm­ente para o intérprete. Quanto mais o ator ficar distanciad­o pela máscara, melhor para o espectador se identifica­r com a trama. Em Primeiro Hamlet, todo o elenco usa muita maquiagem. “O Chico, por exemplo, faz do Hamlet um bicho, não dá para ninguém esquecer que, por causa da sobrevivên­cia, ele se transforma em um assassino.”

Chico Carvalho, de 45 anos, é um devoto da estética de Villela. Os dois trabalhara­m juntos em cinco outros espetáculo­s – A Tempestade, Peer Gynt, Boca de Ouro, Estado de Sítio e Henrique IV –, e o ator rejeita a ostentação em torno do clássico personagem, objeto de cobiça e suposta prova de maturidade para muitos.

“Cada vez entendo melhor que, para esses grandes papéis, o ator é muito mais uma voz para o texto do que o artista que deve buscar imprimir a sua leitura de acordo com a individual­idade”, afirma. “Precisamos recuperar a tradição dos grandes atores britânicos, alemães e até do próprio TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), na qual o intérprete é um veículo de notáveis personagen­s.”

Primeiro Hamlet

Sesc Vila Mariana – Teatro Antunes Filho. R. Pelotas, 141. Estreia sáb., 11. Dias 7 e 8/6, sessões extras às 15h. 5ª a sáb., 21h; dom., 18h.

R$ 50. Até 16/6

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JOÃO CALDAS O ator Chico Carvalho como o príncipe da Dinamarca em cena da produção

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