O Estado de S. Paulo

Caldo de cultura

- Sérgio Augusto É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’, ENTRE OUTROS

Um boxeador, de terno, a falar com alguma desenvoltu­ra sobre Gustave Flaubert na televisão. E no horário nobre. Só podia ser na França.

Foi com essa cena que deparei ao sintonizar o canal France 2 no meu quarto de hotel em Paris, na última noite de abril de 1991. Não guardei o nome do atleta. O único boxeador francês fixado na minha memória ainda é Marcel Cerdan, menos, aliás, por suas proezas no ringue do que por seu rumoroso romance com Edith Piaf.

No tal programa, um talk show, pego já em andamento, ele era presença discreta na pequena plateia que acompanhav­a sua figura central, a atriz Isabelle Huppert, a falar de sua participaç­ão no filme Madame Bovary, dirigida por Claude Chabrol, que, um ou dias depois, estrearia nas telas parisiense­s.

Claro que o programa só podia ser o Bouillon de Culture (1991-2001), ancorado por Bernard Pivot, o mais popular divulgador literário e cultural da França, que antes se notabiliza­ra com outro programa de igual formato: Apostrophe­s (1975-1980).

Morto na segunda-feira, aos 89 anos, completado­s na véspera, Pivot era um intelectua­l de massas sem similar nos canais de TV da Europa e da América, o maior incentivad­or de livros e do prazer de ler que eu conheci. “Le Roi Lecteur”, definiu-o Le Monde. Seu som ou ruído favorito? O produzido pelo folheio de um livro.

Seus raros epígonos fora da França cobriam mais a área do show business, casos dos excelentes David Cavett (ABC TV) e James Lipton, criador e apresentad­or de Inside The Actors Studio, na TV a cabo. Você encontra todos eles, fartamente, no YouTube. Maratonei o máximo que pude dos talk shows de Pivot, no meio da semana. Borges,

Eco, Lévi-Strauss, Woody Allen, Simenon, Marguerite Yourcenar e outros tantos apostrofad­os ilustres.

Lipton, que frequentem­ente reconhecia no ar sua dívida com Pivot, participou mais de uma vez do programa do mestre e traduziu para o inglês as perguntas que, adaptadas do célebre Questionár­io Proust, fechavam Apostrophe­s e Bouillon.

Os três entrevista­dores tinham em comum uma virtude basilar: faziam seu trabalho de casa, davam a impressão de saber tudo sobre o entrevista­do e suas obras. Justo o oposto do que os preguiçoso­s similares daqui faziam e fazem, com as exceções de praxe.

“Esse livro que você tá lançando é sobre o quê? Conta aí pros nossos telespecta­dores.” Ouvi muitas coisas desse tipo, dirigidas a mim, inclusive.

Pedro Bial faz o trabalho de casa. Jô Soares fazia, também, municiado por uma equipe de pesquisado­res, mas costumava falar além da conta, quase que se autoentrev­istava no decorrer da conversa quando acabara de lançar um livro de sua autoria ou tê-lo traduzido no exterior.

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil