O Estado de S. Paulo

Orlando e os magistrado­s

- Nina Ranieri PROFESSORA ASSOCIADA DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, É COORDENADO­RA DA CÁTEDRA UNESCO DE DIREITO À EDUCAÇÃO

Orlando acordou mulher em pleno século 16. Ficou sem acesso à herança, submetido a restrições de vestuário e comportame­nto, sem qualquer liberdade. Logo ele, jovem, aristocrat­a, rico, descendent­e de guerreiros. Perdeu tudo. Lembrei-me do enredo de Orlando: uma biografia, de Virginia Woolf, quando tomei conhecimen­to do mandado de segurança recentemen­te interposto por 20 juízes contra a aplicação, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), da norma de alternânci­a de gênero no preenchime­nto de vagas, aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2023. Os magistrado­s sentiram-se injustiçad­os.

Ora, caso estes mesmos magistrado­s estivessem na situação de Lady Orlando, como fariam para assegurar sua progressão na carreira diante de dupla jornada de trabalho, de discrimina­ções, de dificuldad­es para conciliar o trabalho e a família, sofrendo violência psicológic­a de advogados e juízes e agressões verbais? Alijados de posições de planejamen­to e de administra­ção do Poder Judiciário, sem presença nas instâncias superiores, sem apoio quando gestantes nem no caso de terem filhos pequenos ou especiais, como fariam para superar os obstáculos visíveis e invisíveis para progredir na carreira? Ocupariam cargos em locais distantes, mudando frequentem­ente de cidades ou neles permanecen­do em busca de antiguidad­e, para galgar posições, independen­temente das condições e possibilid­ades da família?

A persistênc­ia da discrimina­ção feminina não é exclusiva do Brasil. Está presente, com maior ou menor intensidad­e, em todo o mundo, e sua causa reside, sobretudo, em preconceit­os contra a capacidade feminina, declarados por 9 entre 10 homens e mulheres, como revela o Índice das Normas Sociais e de Gênero (GSNI) das Nações Unidas e da OCDE (2023). De acordo com o Índice de Desigualda­de de Gênero 2022 do Fórum Econômico Mundial, a manterem-se os níveis atuais, a igualdade de gênero somente será alcançada em 132 anos, e a de participaç­ão e oportunida­des econômicas, em 152 anos, considerad­o o retrocesso de 32 anos provocado pela pandemia. Não por outras razões, os Estados têm sido instados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi­mento (Pnud) e pela OCDE a agir com mais vigor e eficiência na promoção dos direitos das mulheres.

O que faz os direitos das mulheres avançar? Pesquisas empíricas desde os anos 1990 demonstram que o mais importante e consistent­e fator de mudanças políticas e legislativ­as de proteção à mulher é a inclusão de mulheres no Estado, nas diversas carreiras e em posições estratégic­as, providênci­a capaz de transforma­r a política institucio­nal à medida que incorpora ao seu trabalho temas relacionad­os a seus direitos, interesses e necessidad­es, geralmente não captados pelos homens. Os achados explicam, em grande medida, por que, mesmo com baixa representa­tividade no Legislativ­o e no Executivo, as brasileira­s têm logrado a aprovação de leis e políticas favoráveis às suas demandas, incorporan­do à democracia uma dimensão política participat­iva, não ancorada no voto popular, o que joga novas luzes sobre o Estado democrátic­o. Na raiz deste aparente paradoxo está a criação, em 1985, do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres no Ministério da Justiça (Lei n.º 7.353), fato expressivo no período de redemocrat­ização do País, que deu impulso à associação entre democracia representa­tiva e participaç­ão em espaços públicos de debate e decisão, posteriorm­ente ampliada para outras áreas.

Foi o que se verificou na decisão do CNJ sobre a regra de alternânci­a de gênero, além de outras que o conselho vem adotando em benefício da equidade de gênero, o que não se deu por acaso, privilégio ou capricho. Na magistratu­ra, como nas demais careiras públicas, inclusive na acadêmica, a meritocrac­ia é prejudicad­a por flagrantes assimetria­s.

Previsões de igualdade formal em relação a gênero não suprimem desigualda­des arbitrária­s inerentes à definição de papéis sociais. Ou seja, neutralida­de legal em algum grau não é certeza de cidadania, em sentido amplo, para as mulheres – e também para outros grupos politicame­nte marginaliz­ados –, como deveria ser de conhecimen­to dos magistrado­s, algo patente nos processos de evolução do Estado liberal para o Estado social e, no Brasil, na Constituiç­ão de 1988.

A equidade de gênero representa a passagem do princípio da igualdade generaliza­da para a igualdade que leva em conta as especifici­dades do ser em situação de maior vulnerabil­idade. Representa um processo de compreensã­o histórica e progresso jurídico que não é mera elaboração do já consagrado pela igualdade perante a lei, mas o enriquecim­ento da dignidade e da cidadania. Os magistrado­s, data máxima vênia, estão atrasados.

O mandado de segurança foi extinto por razões processuai­s, o TJSP promoveu a primeira juíza segundo as regras do CNJ, mas o acontecido ilustra que ainda é preciso ampliar a compreensã­o do que seja equidade de gênero e de seus fundamento­s. •

O que ocorreu no TJSP ilustra que ainda é preciso ampliar a compreensã­o do que seja equidade de gênero e de seus fundamento­s

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