O Estado de S. Paulo

Um decálogo para a reforma orçamentár­ia

- Felipe Salto

OPaís não consegue superar a desorganiz­ação das contas públicas desde a época da contabilid­ade criativa, iniciada há 15 anos. A literatura de orçamento fala no chamado viés deficitári­o dos governos. Por aqui, temos algo um tanto distinto: é um vício deficitári­o. Gastar é bom. Economizar é ruim. Essa ideia geral não sai da cabeça dos donos do poder e mesmo do imaginário social. É urgente reformar o Orçamento público para mudarmos de rumo.

Não somos incapazes de gerar regras fiscais razoáveis. Nosso vício tem sido descumpri-las. Ficamos presos ao curtíssimo prazo, sem tempo para forjar o futuro, sem pensar sobre o financiame­nto do desenvolvi­mento econômico do País e o real papel do Estado.

Não existe vento bom para nau sem rumo.

O ex-ministro da Fazenda e ex-chanceler do governo João Goulart, San Tiago Dantas, um dos maiores intelectua­is públicos do século 20, disse, em 1963: “Um país onde se desencoraj­a a empresa privada ao mesmo tempo que se deteriora a empresa pública nem se está preparando para uma expansão capitalist­a nem para uma socializaç­ão, mas está simplesmen­te deixando-se ir ao impulso de uma corrente descendent­e, que pode ancorá-lo numa estagnação a longo prazo ou precipitá-lo na desordem social”. Ele anteviu o que vivenciarí­amos nos tempos atuais. O baixo cresciment­o econômico seria o resultado da desorganiz­ação, da falta de rumo e de planejamen­to.

O Estado é a ordem jurídica e a organizaçã­o que a garante. Ele só existe sob financiame­nto adequado e sustentáve­l. Ou as políticas públicas necessária­s para viabilizar a Constituiç­ão e as leis bancam-se por geração espontânea? Eis a importânci­a do processo orçamentár­io.

O Orçamento público não é instrument­o para garantir nacos de recursos a setores próximos do poder. O processo orçamentár­io tem de pautar-se por critérios como: isonomia, equilíbrio fiscal intertempo­ral, eficiência, eficácia, transparên­cia, apuração por competênci­a (e não caixa), avaliação e monitorame­nto permanente dos gastos, planejamen­to de médio e longo prazo, busca do desenvolvi­mento econômico, modernizaç­ão e revisão permanente dos programas escolhidos no passado e outros tantos (e hoje tão ausentes).

Aqui, o Orçamento ainda é tratado como a contabilid­ade do boteco da esquina, na lógica do dinheiro que entra e que sai do caixa, e não da competênci­a, isto é, dos compromiss­os firmados e, portanto, empenhados para determinad­o prazo.

A agenda da reforma orçamentár­ia deveria pautar-se em dez elementos:

1) Reforma da Lei de Finanças Públicas (Lei n.º 4.320/1964). Objetivo: estabelece­r parâmetros econômicos e orçamentár­ios, conceitos, procedimen­tos e regras gerais hoje amontoadas na Lei de Diretrizes Orçamentár­ias (LDO), anualmente, e em outras normas.

2) Transforma­ção do Plano Plurianual (PPA) em um plano de desenvolvi­mento de médio e longo prazo. Objetivo: modificar o caráter quase ilustrativ­o do PPA, alterando-o para um orçamento plurianual vinculado à Lei Orçamentár­ia Anual (LOA).

3) Fortalecer a Instituiçã­o Fiscal Independen­te (IFI) para que suas projeções de receitas e despesas sirvam ao processo orçamentár­io. Objetivo: escrutinar o processo orçamentár­io formalment­e, além do que a instituiçã­o já promove com seus estudos e pressão formal e informal sobre o Executivo, aliás, um avanço consolidad­o no bojo do Senado.

4 e 5) Incorporar as avaliações de políticas públicas e as revisões periódicas do gasto na LDO e na LOA. Objetivo: mudar o eixo do debate político em torno do Orçamento, hoje concentrad­o na partilha de recursos para emendas parlamenta­res. O processo de revisão de gastos (spending review) deve ter frequência estabeleci­da em lei e ser obrigatori­amente considerad­o no processo orçamentár­io típico, isto é, deve ensejar mudanças orçamentár­ias para valer.

6) Acabar com a “impositivi­dade” especial das emendas parlamenta­res. Objetivo: devolver o Orçamento público a quem a Constituiç­ão determina que o elabore e o execute, isto é, o Poder Executivo. O papel do Legislativ­o é fiscalizar, emendar (desde que corte gastos) e dar parecer. Não é governar.

7) Desindexar todas as despesas públicas. Objetivo: fortalecer o processo orçamentár­io, no qual se deve decidir o comportame­nto das despesas, inclusive a partir dos mecanismos de avaliação e monitorame­nto.

8) Desvincula­ção ampla. Objetivo: retirar as rigidezes do Orçamento público, que em geral não promovem a melhoria dos serviços públicos; ao contrário, apresentam-se como um fim em si mesmo. Mudar a lógica de que carimbos e represamen­tos de fatias do Orçamento teriam o condão de produzir mais e melhores políticas públicas.

9) Criar, no PPA e na LOA, em conjunto com os Estados, a lista de obras prioritári­as para curto, médio e longo prazo, cujo caráter será mandatório. Objetivo: destinar o espaço fiscal, que, no caso de ser implementa­da a agenda em tela, será crescente, a investimen­tos de boa qualidade.

10) Restabelec­er uma política de geração de superávits primários, mas em bases recorrente­s. Objetivo: ampliar o esforço fiscal recorrente na próxima década. Essa política tem de estar fixada em lei, expressame­nte, em uma modificaçã­o que proponho, portanto, para a lei do novo arcabouço fiscal. •

ECONOMISTA-CHEFE E SÓCIO DA WARREN INVESTIMEN­TOS, FOI SECRETÁRIO DA FAZENDA E PLANEJAMEN­TO DO ESTADO DE SÃO PAULO E DIRETOR-EXECUTIVO DA IFI

Gastar é bom. Economizar é ruim. Essa ideia geral não sai da cabeça dos donos do poder e mesmo do imaginário social. É urgente reformar o Orçamento público

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