Amigos de longa data: a incrível domesticação dos gatos
Entenda como esse predador selvagem se transformou na carinhosa bola de pelos que você tanto ama
Elegante, carinhoso, individualista e dono de um temperamento singular, o gato é um animal fascinante e sabe disso. Orgulhoso, ele não quer ser de outra espécie, nem mesmo a humana. Na verdade, ele acha que nós é que somos felinos gigantes. Para ele, o apartamento não passa de uma selva mobiliada. Caixas são como cavernas e todo movimento na cortina e no tapete merecem atenção extra. Mas como é possível que o bichano fofo e todo preguiçoso no seu sofá seja esse exímio predador felino? O gato doméstico ainda é selvagem? Para entender sua personalidade e sua relação com o Homem, é preciso conhecer o longo caminho que ele percorreu até as nossas casas.
PRIMEIRAS PEGADAS
Durante muito tempo, pesquisadores acreditaram que os antigos egípcios foram os primeiros a manter o gato como animal de estimação, há 3.600 anos. Mas novas descobertas revelaram que o peludo já fazia companhia aos humanos há muito mais tempo: cerca de 9.500 anos.
Em 2004, Jean-Denis Vigne, do Museu Nacional de História Natural de Paris, e seus colegas encontraram evidências arqueológicas na ilha de Chipre, próxima à Turquia. Em uma cova rasa, havia um homem enterrado ao lado de um gato, com apenas 40 cm de distância um do outro. Seriam então os bichanos oriundos das ilhas mediterrâneas? Com o intuito de desvendar esse mistério felino, em 2000, o pesquisador norte-americano Carlos A. Driscoll viajou e coletou amostras de DNA de cerca de mil gatos selvagens e domésticos do sul da África e do Oriente Médio. Ao analisar os dados de cada um dos animais, ele constatou cinco agrupamentos genéticos, ou linhagens, de gatos selvagens – sendo que os gatos selvagens Felis silvestris lybica, coletados nos desertos de Israel, nos Emirados Árabes e na Arábia Saudita, foram os mais semelhantes geneticamente com os domésticos. Assim, de acordo com a pesquisa, estima-se que os gatos domésticos (F. s. catus) de todo o mundo, de raças ou SRDs, são oriundos de um único local: o Oriente Médio, e não de outras regiões, onde outras subespécies selvagens também são comuns. Ou seja, não aconteceu uma domesticação paralela em outros locais. Dessa maneira, acredita-se que o berço da civilização
seja o mesmo do gato. Os bichanos iniciaram seu convívio conosco aproximadamente 10 mil anos atrás, no Crescente Fértil (região entre Israel, Iraque e extremo nordeste da África, onde os primeiros assentamentos foram estabelecidos). Portanto, o felino companheiro do nosso amigo humano do Chipre carrega, em sua história, uma viagem marítima. Provavelmente, os gatos foram levados para a ilha mediterrânea de barco, visto que a distância não é grande. O estudo completo foi concluído e publicado em 2007, pela Universidade de Oxford, na Inglaterra.
FUNCIONÁRIO EFICIENTE
Cães, ovelhas, vacas, a maioria dos animais foram domesticados com um único propósito: trabalhar. Seja protegendo ou fornecendo carne, leite ou lã para os humanos, sendo úteis e contribuindo com o nosso sustento. Mas e os gatos? A verdade é que os bichanos se aproximaram da gente por mera conveniência. Com a organização da agricultura, as primeiras colheitas atraíram os ratos. Ao notar a movimentação dos roedores, os gatos não perderam tempo e também se aproximaram dos vilarejos.
Com uma atraente fonte alimentar, os gatos tiveram que explorar e se adaptar ao novo ambiente já habitado pelo Homem. A partir daí, o nosso amigo Darwin pode nos ajudar a entender a evolução deles. A seleção natural favoreceu os felinos que foram capazes de viver ao lado dos humanos e, assim, terem acesso aos ratos. Com o tempo, os animais mais adaptados e menos ariscos se espalharam pela região. “A seleção envolveu sobrevivência e aceitação dos humanos por esses gatos, que eram geneticamente mais amigáveis, sociais e maleáveis que outros felinos, que eram arredios, ferozes e desagradáveis. Quem você escolheria?”, analisa o pesquisador norte-americano Stephen J. O’Brien, que estuda há anos a genética dos gatos.
LUGAR E HORA CERTOS
Por estar próxima dos primeiros povoados, a F.s.lybica foi domesticada mais facilmente do que outras subespécies. Sua capacidade de entender o ser humano foi essencial para ajudá-la a ficar nesse ambiente. “Um dos estímulos para tornar um gato mais sociável é fazê-lo ficar próximo de outros gatos adultos, mas não da mãe, durante os primeiros quatro e cinco meses de idade”, diz Carlos C. Alberts, pesquisador do Laboratório de Evolução e Etologia (LEVETHO), da Unesp. Assim, o filhote perpetua um comportamento amigável ao longo da vida. Com a fartura de alimentos, isso foi possível. “Os animais mais velhos não representavam uma ameaça por ‘roubar’ possíveis caças.”
Com a expansão da agricultura, a partir do Crescente Fértil, acredita-se que o mesmo tenha acontecido com o gato, que se espalhou pelos vilarejos da região. Ou seja, a situação histórica favoreceu a popularização da subespécie. “O que aconteceu com a F. s. lybica foi que ela teve a oportunidade: estava no lugar e no momento certo”, pondera Alberts.
INÍCIO DA AMIZADE
Por que os humanos levaram os gatos para suas casas? Não seria mais fácil deixá-los como vigias de estoque de colheitas? Até poderia ser, porém, o problema é: quem resiste à carinha desses peludos? “O Homem se encantou pelos gatos. Provavelmente, filhotes foram encontrados e adotados pelos humanos. Esses animais, quando cresceram, tornaram-se mais dóceis e domésticos e tais características foram transmitidas para as próximas gerações”, detalha Alberts.
A história da domesticação felina é nebulosa. Pouco se sabe como foi e quanto tempo durou o processo de transformação do gato selvagem para o gatão doméstico que perambula pela sua casa. Um estudo publicado, em 2014, no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), ajudou a jogar luz nesse obscuro enigma. Pesquisadores norte-americanos e europeus compararam o genoma de gatos selvagens e domésticos e descobriram as principais diferenças entre os dois. “Gatos, ao contrário dos cachorros, são apenas semidomesticados”, ressalta o geneticista Wes Warren, da Universidade Washington, em Saint Louis, nos Estados Unidos, e um dos autores do estudo. “Apenas nos últimos anos eles se diferenciaram das espécies selvagens e alguns ainda cruzam com seus parentes das florestas. Por isso, nos surpreendeu encontrar em seu DNA as evidências da domesticação.”
Ao analisar os dados, os cientistas encontraram apenas 13 genes nos gatos domésticos que os distinguem dos selvagens. Ou seja, eles pouco mudaram da época de quando viviam livres na natureza. Basicamente, os genes estão ligados às sensações de prazer, à recompensa, ao medo e à memória. Os cientistas olharam para essas mudanças como uma possível resposta à convivência dos animais com o Homem.
RELAÇÃO NA HISTÓRIA
Alguns vestígios arqueológicos ajudam a entender esse processo. Em Israel, foi encontrada uma estatueta de marfim que data quase 3.700 anos. Um indício de que o gato já era visto com frequência nos vilarejos do Crescente Fértil. Sabe-se também que na China, há cerca de 5.000 anos, os felinos já viviam próximos dos fazendeiros, auxiliando-os no controle de pragas. Mas nada é mais evidente do que as ilustrações encontradas no Egito. Colocado por muitos estudiosos como o local de origem da domesticação felina, o país detém provas contundentes: pinturas, de cerca de 3.500 anos, mostram gatos participando ativamente da rotina humana. Porém, ainda assim, o enigma persiste: as ilustrações são mais recentes que o enterro cipriota.
Fato é que os egípcios tiveram grande importância na domesticação e popularização dos gatos pelo mundo. Nessa civilização, há 2.900 anos, o animal se tornou divindade, na forma da deusa Bastet. Tanto que uma incrível quantidade de felinos mumificados foi encontrada na região. Durante muito tempo, eles até mesmo proibiram a exportação desses bigodudos. Contudo, a medida não obteve sucesso e, por volta de 2.500 anos atrás, os felinos chegaram ao continente europeu. Navios partiam de Alexandria para diversas regiões do Império Romano e, possivelmente, contavam com marujos felinos para exterminar os roedores a bordo. A partir daí, durante a expansão romana pelo continente, as embarcações cruzavam os portos sempre com gatos em seus conve
ses. Assim, eles se espalharam por toda a Europa. Enquanto que, na América, acredita-se que eles tenham chegado com Cristóvão Colombo e outros navegantes, que levavam tais animais a bordo.
INFLUÊNCIA HUMANA
Durante o longo período de convivência conosco, o Homem praticamente não tentou modificar os gatos. Diferentemente dos cães, que, durante a história, vêm sendo criados para nos ajudar em tarefas específicas, como caçar, farejar e proteger. Basta observar as diferenças entre um Dachshund (Salsichinha) e um São Bernardo. Os gatos domésticos, porém, não foram submetidos a essas pressões de criação seletiva. Para conviver conosco, os felinos precisaram apenas ser amigáveis.
Algumas raças surgiram naturalmente, diversificando-se conforme o clima e o ambiente ao qual precisavam se adaptar para viver. Nos lugares frios, por exemplo, tornaram-se maiores e mais peludos, enquanto nas regiões mais quentes, esguios e com o pelo mais curto. O Siamês e o Norueguês da Floresta são alguns exemplos.
O gato doméstico alterou seu comportamento, especializou-se em socialização com o Homem. Os graciosos miados, por exemplo, são direcionados, principalmente, a nós, donos deles. Gatos não são tão falantes assim quando selvagens. Alberts explica que, até então, ele miava apenas para a mãe, porém também passou a emitir esse som para o Homem. “Provavelmente, aqueles que ‘falavam’ mais foram selecionados pelo ser humano, que gosta de animais que interagem. Ao longo das gerações, essa característica se perpetuou, evoluiu e a vocalização aumentou.”
É o que constata um experimento de psicologia evolutiva produzido por Nicholas Nicastro, pesquisador da Universidade de Cornell, Estados Unidos. Os bichanos desenvolveram meios vocais para manipular nossa atenção e conseguirem o que desejam. Ao gravar sons emitidos pela F. s. lybica, identificou que a vocalização, que sugeria apenas irritação, é muito mais simples que a do gato doméstico.
A aparência de sua face também acompanhou a mudança comportamental. Atualmente, o felino possui uma expressão diferente, mais doce, segundo Alberts. “Hoje em dia, ao olhar para um gato é possível identificar o que ele quer. O animal entendeu que era preciso ser mais expressivo, de maneira que os humanos o entendessem.” E, ao longo do tempo, isso foi selecionado pelo Homem. “Foram características e expressões que o ajudaram a ficar nos primeiros vilarejos.”
Quando comparado ao parente selvagem, o gato doméstico é muito semelhante. Padrões de pelagem, tamanho e peso – cerca de 5 kg – são os mesmos. Contudo, no decorrer dos anos, também aconteceram algumas alterações morfológicas. O gato que convive
Hoje em dia, ao olhar para um gato é possível identificar o que ele quer. O animal entendeu que era preciso ser mais expressivo, de maneira que os humanos o
entendessem
conosco, por exemplo, possui um sistema digestório maior, que permite uma dieta menos carnívora – ele teve que se adaptar à dieta humana.
NOVO MEMBRO DA FAMÍLIA
Ao longo da convivência conosco, os gatos passaram por diferentes momentos: de divindade no Egito a, posteriormente, símbolo de azar e do mal na Europa medieval. Mas foi apenas nos últimos 40 anos que eles alcançaram o status de membro da família. A mudança é reflexo do mundo em que vivemos hoje. Diversos fatores e alterações sociais e culturais colaboraram para essa transformação. A tecnologia e a rotina atribulada, por exemplo, tornaram as relações mais frias, frágeis e distantes. A crescente verticalização das habitações e redução de seu tamanho aproximou os bichanos ainda mais de nossa rotina. E eles entraram justamente para preencher nossa necessidade de conexão social. “Com uma sociedade mais individualista, o gato se tornou um ótimo companheiro. Afinal, trata-se de um animal de fácil manejo, companheiro e amoroso como outros”, diz Alberts.
Agradecimentos:
STEPHEN J. O’BRIEN
Possui doutorado em genética na Cornell University e é autor de diversos livros sobre genética, alguns sobre felinos.
CARLOS C ALBERTS
Professor assistente doutor e pesquisador do Laboratório de Evolução e Etologia (LEVETHO), da Unesp.
EDUARDO EIZIRIK
É biólogo, possui pós-doutorado em Genética Evolutiva no Laboratory of Genomic Diversity, National Cancer Institute, NIH, EUA.