Espaço Homebrew, por Lucas Meneghetti
A biotransformação tornou-se um tema amplamente discutido no mundo cervejeiro. Embora este assunto já venha sendo abordado pelos pesquisadores cervejeiros há algumas décadas, ele ganhou grande destaque com a popularização das New England IPAs.
As New England IPAs são cervejas com aromas e sabores intensamente frutados. De corpo aveludado e turbidez característica, esse estilo encanta pela grande qualidade aromática. Tipicamente produzida com grandes doses de lúpulos americanos ou do Novo Mundo, a sua complexidade de aromas é fortemente influenciada pelas reações de biotransformação.
Revisitando os estudos e acompanhando as novidades acerca deste tema, duas coisas chamam a atenção: o quanto evoluímos nesses últimos anos e, paradoxalmente, o quão pouco ainda sabemos sobre os compostos dos lúpulos e as suas interações (o que, particularmente, me deixa ainda mais esperançoso com o futuro das cervejas lupuladas).
Conceito
Biotransformação, tecnicamente, é o processo pelo qual uma molécula tem a sua configuração alterada quando reage com um organismo vivo. Ao pé da letra, este é um processo muito comum, visto que as reações produzidas pela levedura, por exemplo, são biotransformações. No entanto, esse termo é geralmente empregado quando estamos falando das reações dos compostos do lúpulo pela atividade da levedura, e este será o nosso foco.
Na biotransformação, temos uma série de reações que alteram ou quebram as moléculas advindas do lúpulo. O que ocorre, na prática, é a transformação de compostos aromáticos e não aromáticos, trazendo novas dimensões sensoriais à cerveja que, muitas vezes, não seriam obtidas sem essa reação.
No processo cervejeiro, isso ocorre quando há a presença destes compostos de lúpulo durante a atividade de fermentação. Ou seja, para explorarmos as reações de biotransformação do lúpulo, devemos fazer o dry hopping durante a fermentação ou fazer uma boa dosagem de lúpulo no late hopping, de forma que esses compostos estejam presentes no mosto que será fermentado.
Reações e efeitos da biotransformação
Como já mencionei, este é um campo ainda a ser muito explorado. Mas vou elencar aqui, de forma resumida, as abordagens mais importantes da biotransformação.
Reações glicosídicas — Glicosídeos são moléculas não voláteis e inodoras que estão presentes nos lúpulos. A biotransformação é capaz de “quebrar” essas moléculas e liberar compostos aromáticos, como geraniol (aroma de rosas) e linalol (aroma de lavanda). As variedades de lúpulo possuem diferentes tipos e quantidades de glicosídeos. Similarmente, algumas leveduras têm maior capacidade de realizar essas quebras glicosídicas, dependendo da atividade das suas enzimas β-glucosidase.
Transformação de terpenos — Terpenos são uma vasta classe de compostos orgânicos produzidos por plantas e geralmente caracterizados por ter um grande potencial aromático. Uma das reações mais compreendidas é a transformação de geraniol, rico em muitas variedades de lúpulo, em β-citronelol (aroma de cítricos) e linalol. O β-citronelol não é comumente encontrado nos lúpulos e a biotransformação é um ótimo método para alcançarmos o perfil sensorial provocado por este terpeno.
Biotransformação de ácidos orgânicos — Alguns ácidos orgânicos, como o ácido isovalérico (odor de queijo) e o ácido isobutírico (odor de vômito), que aumentam quando o lúpulo envelhece, são convertidos, durante a fermentação, em ésteres frutados. Esse é um processo frequentemente associado às cervejas Lambic.
Liberação de tióis — Este é um assunto ainda mais recente. Tióis são compostos sulfurados. Embora a gente conheça a maioria dos compostos sulfurados como indesejáveis na cerveja (DMS e ácido sulfídrico, por exemplo), os tióis são extremamente potentes, encontrados em proporções muito pequenas e com capacidade de gerar intensos aromas tropicais. Muitos lúpulos possuem tióis ligados a outros compostos e só por meio da reação de biotransformação que conseguimos “liberar” esses tióis para termos os efeitos sensoriais que ele nos fornece.
Além das reações provenientes da biotransformação, o cervejeiro tem outros benefícios ao realizar a lupulagem durante a fermentação. Um deles é evitar os efeitos negativos do hop creep, fenômeno causado pelo dry hopping que, resumidamente, estimula uma nova fermentação na cerveja já pronta. Quando não controlado, o hop creep pode causar diacetil, aumento do teor alcoólico, entre outros.
O outro benefício é quanto à oxidação. É inevitável que a dosagem de dry hoppings, especialmente para os homebrewers, resulte em solubilizar oxigênio na cerveja. Como a lupulagem ocorre com a fermentação ainda ativa, este oxigênio será consumido pela levedura, evitando os efeitos negativos da oxidação.
Orientações
Como pudemos ver, este é um assunto complexo e cheio de informações. Embora os pesquisadores estejam comprometidos a esclarecer como realmente funcionam estas interações, acredito que a melhor forma de compreender os efeitos da biotransformação seja pela experimentação. Para quem estiver iniciando os experimentos com biotransformação, aqui vão algumas dicas:
Adicione o seu dry hopping durante a fermentação. Comece utilizando os seus lúpulos favoritos e analise como eles se comportam quando dosados nessa etapa. Você ficará surpreso com o aroma da cerveja.
Depois dos primeiros testes, procure analisar a ficha técnica dos lúpulos e das leveduras. Procure por informações como a composição de terpenos dos lúpulos ou a atividade da enzima β-glucosidase nas diferentes leveduras. Lembre-se que vários lúpulos possuem um grande potencial aromático, mas precisam ser “liberados” pela biotransformação.
Os resultados sensoriais podem ser diferentes se acrescentamos os lúpulos de dry hopping no início, no meio ou no fim da atividade de fermentação. Experimente diferentes camadas sensoriais utilizando diversos lúpulos e em distintos estágios da fermentação.
Procure, dentro do possível, dosar os seus lúpulos livremente, sem utilizar hop bags. Dessa forma, a extração chega a ser 50% mais eficiente.
Espero que essa coluna tenha te despertado o interesse pelas interações entre lúpulo e levedura e que tenha te inspirado a produzir cervejas cada vez mais criativas.
Boas brassagens!