Fazendo uma Pastry Stout
Por Giancarlo Vitale, mestre-cervejeiro, da Cervejaria Escola Mirante, com colaboração de Daniel Albuquerque.
Apastry Stout é uma cerveja que realiza um encontro entre as antigas tradições cervejeiras britânicas, de produção de cervejas de guarda, e a criatividade imposta pela revolução das craft beers norte-americanas, iniciadas em meados da década de 1970. São Imperial Stouts com adição de algum insumo relacionado à confeitaria em algum passo de seu processo produtivo.
O objetivo aqui será construir uma Pastry Stout de coloração marrom escura, quase preta, com reflexos de coloração rubi quando exposta à luz; com espuma levemente bege, de boa formação e persistência; o sabor trará equilíbrio entre a complexidade de maltes, lúpulos e a geleia de morango adicionada; o corpo da cerveja será médio intenso, com final levemente seco, e a bebida apresentará aromas cítricos entrelaçados ao malte e ao morango, quase imperceptível, mas presente. A tentativa é fazer uma bebida que remeta à torta de chocolate com morango. Como o objetivo é uma produção caseira, a opção foi por usar quantidades mínimas de aditivos químicos da indústria, tentando contornar possíveis dificuldades apresentadas na produção de uma high gravity com recursos acessíveis aos caseiros.
Pastry Stout
Ficha técnica
Apronte: 30 L
Rendimento teórico de 65%
Extrato original: 1,077 sg (19,25 oP) Extrato final: 1,018 sg (4,5 oP) Álcool: 8% v/v
Cor: 68,7 EBC
Amargor: 56 IBU
Coloração: marrom rubi escuro
Composição dos maltes
Buscando a complexidade apresentada pelo estilo base, a relação de grãos é extensa e traz, a princípio, um conjunto de maltes base que visa não somente ao potencial amiláceo (amido) e diastático (enzimas), mas também aos sabores e aromas peculiares do estilo base. Ainda contribuem, em parte, com a cor da cerveja: o malte Caravienna (43,3 EBC e 18,8% do aporte com 2 kg usados), com potencial diastático satisfatório, que acrescenta coloração avermelhada à cerveja, eleva o corpo em função de dextrinas produzidas durante a malteação e contribui com um sutil sabor e aroma caramelo, além do malte Chateau Pilsen (5,9 EBC e 27,3% do aporte com 3 kg usados), que também apresenta alto poder diastático e incrementa o sabor maltado da cerveja. Já o malte Pale Maris Otter (5,9 EBC e 27,3% do aporte com 3 kg usados) figura como grande estrela dessa sequência de maltes base. Além do potencial amiláceo e diastático satisfatórios para um malte base, acrescenta sabores e aromas de caramelo e toffee à cerveja, enriquecendo a complexidade de seu caráter maltado.
Ainda falando a respeito dos grãos, serão usados alguns maltes especiais para trabalhar a cor, mas que também acrescentarão características ao sabor e aroma. O malte Crystal Caramelo (40 L — 78,8 EBC e 4,5% do aporte com 0,5 kg usado) irá contribuir com cor, mas, em função de ser um malte cristal mais claro, auxiliará de forma mais expressiva com o dulçor presente na cerveja. O malte Cararoma (256,1 EBC e 4,5% do aporte com 0,5 kg usados) irá intensificar o avermelhado que se quer acrescentar à bebida. A sua utilização também irá adicionar notas de nozes torradas, caramelo escuro e frutas secas.
Os maltes Chocolate (886,5 EBC e 3,6% do aporte com 0,4 kg usado) e o Chateau Café (500,4 EBC e 1,8% do aporte com 0,2 kg usados) contribuirão de forma decisiva para a determinação da cor; em função de suas tostas, incrementarão o amargor e também incluirão notas tostadas de nozes e café. A aveia em flocos (2,0 EBC e 2,7% do aporte com 0,3 kg usados) e a cevada em flocos (3,3 EBC e 2,7% do aporte com 0,3 kg usados), apesar de se apresentarem em uma pequena fração dos grãos, irão contribuir com a estabilidade da espuma e acrescentar uma textura aveludada à cerveja que será apresentada ao tato oral em detrimento de seu conteúdo proteico. Todos esses grãos, exceto a aveia e a cevada em flocos, devem ser devidamente moídos para serem arriados.
Mosturação e clarificação
Para a mosturação dos grãos, será usada água potável aquecida e ressalinizada. A acidez deve ser corrigida para pHs entre 5,2 e 5,4 após arriar os maltes e as concentrações de cloreto de cálcio e sulfato de cálcio devem ser corrigidas a critério do cervejeiro, de acordo com a água usada antes de arriar os grãos. Como a água da maior parte do território brasileiro é amena, são indicadas pequenas correções na concentração desses sais para se chegar a um perfil de água interessante para o estilo.
O método de mosturação indicado, visto que objetiva cervejeiros caseiros, é o BIAB (brew in a bag) associado à recirculação contínua de mosto. A mosturação deve seguir a sequência descrita:
1. Corrija a água devidamente (4 g de CaCl2 e 3,6 g de CaSO4 em 42 L de água — 3,8 L/kg de malte) e eleve a temperatura até 53 oC para, então, adicionar os maltes moídos, a cevada e a aveia em flocos.
2. Mantenha a mostura por 10 minutos a 50 oC. Há ação de proteases e glucanases; tal fase do processo irá diminuir a viscosidade do mosto, facilitando a filtração, e contribuirá com a liberação de substâncias relevantes para a formação e manutenção da espuma e para o metabolismo das leveduras. Intercale recirculação com o volver da mostura usando a pá cervejeira. Não use a pá cervejeira e a recirculação ao mesmo tem-
po! Isso pode provocar entupimentos no sistema de recirculação.
3. Eleve a temperatura da mostura para 67 oC durante 17 minutos.
4. Mantenha a mostura por 30 minutos a 67 oC. Ocorre, nessa etapa da mosturação, a ação das enzimas beta e alfa-amilases; essa etapa do processo está diretamente relacionada à graduação alcoólica da cerveja, pois quebra a molécula do amido em moléculas menores, que podem ser fermentadas pelas leveduras. Intercale recirculação com o volver da mostura usando a pá cervejeira.
5. Eleve a temperatura da mostura para 72 oC durante 5 minutos.
6. Mantenha a mostura por 30 minutos a 72 oC. A sacarificação continua nessa fase do processo, quebrando as moléculas de amido em moléculas de dextrinas, que irão contribuir com o corpo da cerveja, visto que não são açúcares fermentáveis. Lembre-se: corpo e graduação alcoólica são coisas diferentes! Intercale recirculação com o volver da mostura usando a pá cervejeira somente nos primeiros 15 minutos desta etapa. A partir de então, mantenha somente a recirculação contínua do mosto. Também tente improvisar uma clarificação do mosto no BIAB. Por que não?
7. Processe o teste do iodo, que verifica se todo amido presente no mosto já foi hidrolisado.
8. Sendo o teste do iodo positivo, eleve a temperatura da mostura para 77 oC durante 5 minutos e mantenha essa temperatura por 10 minutos, fazendo somente recirculação, sem mexer a mostura: o mash out consiste em desnaturar as enzimas que atuaram durante a mosturação. Muito importante que esse passo nunca apresente uma temperatura que supere os 80 oC, o que pode extrair taninos para a cerveja, substâncias relacionadas à adstringência na bebida. O objetivo definitivamente não é extraí-las.
9. Retire o saco com os grãos da panela onde foi realizada a mosturação. Escorra-os bem! Lembre-se, ainda existe muito açúcar neles. Não pressione ou amasse os grãos, objetivando aumentar o volume de mosto. Isso anulará todo processo de filtração realizado anteriormente.
Fervura, lupulagem e resfriamento
Findada a mosturação, é hora de ferver e lupular o mosto. A fervura transcorre durante 70 minutos e, já em seu início, tem adição do lúpulo Columbus (25 g, 14% de a.a./25% IBU), que é novamente incluído (20 g, 14% de a.a./18,4% IBU) faltando 50 minutos para o final da fervura, objetivando o amargor que será apresentado pela cerveja. Restando 30 minutos para o final da fervura, o lúpulo Galena (15 g, 14% de a.a./9,9% IBU) deve ser reunido para a extração de princípios relacionados ao sabor levemente picante, que não é percebido na cerveja, mas contribui para sua complexidade e frutado.
Restando 15 minutos para o final da fervura, deve ser adicionado um agente químico de coagulação de sólidos insolúveis que permanecerão no trub quente, o whirlfloc (1/2 pastilha usada para 50 L). Faltando 10 minutos para terminar a fervura, é adicionado o lúpulo East Kent Goldings (15g, 14% de a.a./1,9% IBU), que fornecerá sabores e aromas picantes, cítricos e mentolados. Faltando 5 minutos para o final da fervura, deve ser adicionado o açúcar refinado, o que elevará a densidade do mosto e tornará a cerveja, apesar de alcóolica e encorpada, levemente seca ao final do gole, elevando seu drinkability.
O lúpulo Cascade (10 g, 5,5% de a.a./0,7% IBU), que trará aromas cítricos, mentolados e de frutas vermelhas, será adicionado juntamente com o açúcar refinado e ao final da fervura (last worst hopping), antes do whirlpool (10 g, 5,5% de a.a./0,0% IBU). Este será feito por 5 minutos e, assim que terminado e estabilizado, o mosto deverá ser resfriado até 18 oC e transferido para o recipiente onde ocorrerá a fermentação.
É válido lembrar que, em uma fermentação de cerveja com elevados valores de extrato bruto, a produção de espuma durante a fermentação é muito grande. Por isso, preocupe-se em deixar um head space consideravelmente maior do que o praticado na produção de outras cervejas em seu recipiente de fermentação.
Fermentação e maturação
A fermentação deve ser iniciada com a inoculação de leveduras (três pacotes de DCL Fermentis #US-05) previamente hidratadas com 345 mL de água estéril. A temperatura deve subir para 21 oC naturalmente e ser mantida assim até o final da fermentação, entre quatro e seis dias. A essa temperatura, otimiza-se a produção de ésteres frutados pelas leveduras.
Ao final desse período, adicione ao mosto fermentado a geleia de morango (250 g). Esse é o toque Pastry da receita. Uma nova fermentação irá ocorrer e isso poderá ser percebido por meio da liberação de gás novamente pelo air lock. Assim que a geleia for adicionada, espere novamente entre quatro e seis dias a 21 oC e então a temperatura deve ser diminuída em 1 oC por dia até chegar a 4 oC, perfazendo 17 dias de declínio de temperatura.
Nesse momento, a cerveja deve ser separada do trub frio, acondicionada em barril de inox e pressurizada com CO2 ou engarrafada com priming. A temperatura deve ser reduzida para 0 oC e mantida por pelo 30 dias, caso a técnica escolhida tenha sido barril pressurizado. Caso o envase com priming tenha sido a técnica escolhida, a cerveja deve ser envasada com priming de 7 g/L de açúcar invertido, mantida em temperatura ambiente por 15 dias. Após isso, deve-se retornar com as garrafas para refrigeração adequada, entre 0 oC e 4 oC, e aguardar pelo menos um mês para servir. Se esse período puder se estender, a cerveja ficará cada vez melhor.