Gambrinus ficção com um toque de história
O patrono da cerveja pode ter inspiração em figuras reais em meio a lendas e mitos.
Talvez esta história já tenha sido contada vezes demais. Talvez por isso o mito esteja tão estabelecido e seja possível encontrar Gambrinus em todos os lugares — uma cerveja na República Tcheca, uma cervejaria nos Estados Unidos, um restaurante no Brasil. O lendário “rei da cerveja” estampa marcas e decorações e povoa o imaginário cervejeiro na Europa e nas Américas, onde estátuas foram erguidas para marcar a sua presença. A figura costuma seguir os mesmos traços: um homem de barba e cabelos mais longos, com uma capa e frequentemente uma coroa, segurando uma caneca de cerveja, geralmente próximo de (se não sentado sobre) um grande barril, com toques medievais. O quebra-cabeça que pode indicar o seu surgimento atravessa períodos históricos e muitas, muitas lendas.
Parte realidade
Existem duas figuras reais que aparecem com mais frequência quando se tenta remontar o personagem que originou Gambrinus. O primeiro é Jan Primus, ou John I (1251–1295), duque da Borgonha, que governou Brabante, na Bélgica, região de Flandres que hoje inclui Bruxelas. São ligadas a ele algumas das características heroicas que passaram para a figura que conhecemos: “era um guerreiro, um excelente amante, um bon vivant, e era tão ambicioso quanto habilidoso politicamente”, descreve Randy Mosher em “Degustando cerveja” (Senac São Paulo, 2020). Também se conta da sua grande capacidade de beber litros e litros de cerveja, reforçando a ligação com a lenda popular.
Diz-se ainda que Jan Primus presidiu a guilda dos cervejeiros de Bruxelas. O cervejeiro e escritor George Ehret atribui a ele o mérito por ter inventado a cerveja lupulada (quanto a isso, há muitas dúvidas). Mas a história mais interessante foi registrada pelo pesquisador Horst Dornbusch: em 1288, Jan Primus participou de uma campanha militar, a Batalha de Worringen, que acabou com o domínio do bispado em Colônia. E isso teve muita relação com a cerveja nessa região germânica: o bispado taxava altamente os cervejeiros dali e, com a derrota, alteraram-se para melhor os impostos sobre a cerveja. Mais tarde, os vencedores acabariam fundando Düsseldorf, que criou a sua Altbier para competir com a Kölsch, de Colônia.
Caldeirão de personalidades
O segundo personagem histórico ligado, muitas vezes, a Gambrinus é Jean Sans Peur, João sem Medo, John, o Corajoso, ou ainda João, o Destemido (1371–1419), da Borgonha, que se envolveu em inúmeras intrigas políticas. Ehret diz que ele também era conhecido como Ganbrivius e que uma possível transcrição com a grafia poderia ter levado a Gambrinus. Essa lógica também se aplicaria a Jan Primus, que possui certa semelhança fonética.
Além desses dois fortes candidatos a inspiração, Mosher cita ainda um copeiro de Carlos Magno que utilizava a alcunha de Gambrinus ou, simplesmente, a adaptação vinda de dois termos diferentes em latim: cambarus, que significa “adegueiro”, ou ganae birrinus, “bebedor de taverna” — muito mais abrangentes e que abarcariam as características necessárias de um símbolo cervejeiro. “Existem outras possibilidades quanto ao antecedente histórico real, muitas dependentes da pronúncia não confiável de um nome verdadeiro, e todas, finalmente, dando lugar ao nome geralmente latinizado, Gambrinus”, escreve Dick Cantwell para o “O guia Oxford da cerveja” (Blucher, 2020).
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Em 1526, a lenda de Gambrinus já existia, pois são desta época retratos e versos em honra ao rei de Flandres e Brabante, aclamado não só como cervejeiro, mas também inventor da cerveja. Neste ponto, já se misturavam uma longa sequência de
histórias fantásticas, que se descolam das possíveis figuras reais e jogam Gambrinus para muitos anos no passado e para muito além da realidade.
O título de “rei da cerveja”, pelo menos, tem uma origem rastreável: foi criado pelo cronista bávaro Johannes Turmair em 1519, que pode ou não ter criado toda a lenda em si. O personagem, assim, teria origem germânica, e não belga. Segundo escreveu, “Gambrivius” seria governante da tribo Gambrivii e casou com Ísis — ela mesma, a deusa egípcia da fertilidade. A deusa lhe deu o dom para a invenção da cerveja e o casal ensinou aos alemães o preparo da bebida. Os dois, aliás, teriam se estabelecido na Baviera e todos os duques de lá descenderiam deles.
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Muitos dos contos estão ligados ao período medieval e um deles tem um quê da balada de um trovador. Diferente do primeiro, não está ligado ao divino, mas ao infernal. Tudo começou com uma desilusão amorosa: Gambrinus seria um pobre fabricante de vidros que se apaixonou pela filha do seu mestre e foi rejeitado, abandonando, então, a profissão e tornando-se poeta. Após encontrar a amada em uma festa na qual tocava e cantava e passar por infortúnios com a população local, decidiu se matar, e foi quando o diabo apareceu. Como é típico dessas histórias, o diabo propôs um acordo: faria Gambrinus esquecer a amada em troca da posse de sua alma por 30 anos. Ele aceitou e seguiu a vida, mas acabou viciado em jogos e ainda com a lembrança do amor rejeitado. A história segue falando de nova tentativa de suicídio, quando o diabo aparece novamente e Gambrinus, enfurecido, cobra que ele não cumpriu sua parte do acordo, já que ele não havia esquecido a amada. É então que o diabo, como que para se redimir, faz surgir à frente de Gambrinus um campo de lúpulo e uma cervejaria e, finalmente, ensina-o a produção de cerveja.
A figura atual de Gambrinus é uma colagem desses vários contos, misturando uma aparência histórica e muita fantasia. Seja como for, Gambrinus é um símbolo dos bons momentos regados à cerveja. Caso queira brindar em honra a esta figura mítica, que atravessou os tempos e segue representando o bem viver cervejeiro, ele é celebrado no dia 11 de abril.
Referências
“Degustando cerveja: tudo o que você precisa saber para avaliar e apreciar a bebida”, Randy Mosher (Senac São Paulo, 2020)
“Gambrinus, king of beer”, compilado por Walt Vodges e disponível em http://stein-collectors.org/library/articles/ Gambrinu/Gambrinu.html
“O guia Oxford da cerveja”, Garrett Oliver (ed.) e Iron Mendes (ed. edição brasileira) (Blucher, 2020)
Born to be (beer) king, de Horst Dornbusch, publicado na Beer Advocate em setembro de 2004, disponível em https://www.beeradvocate.com/archived-articles/604/