Parti-gyle
quando o mosto rende mais
O ABC desta técnica
Ilustração: Iuri Lang Meira
Pedro Fraga explica que parti-gyle é o nome que se dá às cervejas produzidas a partir de um mesmo volume de grãos: “É, em linhas gerais, produzir duas ou mais cervejas ao invés de uma, usando a mesma base de maltes e grãos”. Para reforçar, o mosto de cerveja é o líquido cheio de açúcares destinado ao processo de fermentação resultante da extração e quebra do amido do malte de cevada e cozido em determinadas temperaturas por um período de tempo.
Sobre a separação do primeiro mosto para o segundo, explica que o primeiro (que resulta do cozimento dos grãos) é mais intenso na quantidade de açúcares dissolvidos. “A partir deste momento, quando transferimos esse primeiro mosto para a tina de fervura, fazemos a lavagem dos grãos com água quente para extração dos açúcares residuais que ficaram para trás, resultando em um segundo mosto menos concentrado, e assim progressivamente.”
de mostos
Segundo Pedro, existe um momento em que se começa a extrair menos açúcares dos grãos e ter mostos com muito pouco potencial fermentativo. Porém, assegura, o processo de parti-gyle não é necessariamente tirar muitos mostos dos mesmos grãos através de múltiplas lavagens em sequência. “A versatilidade maior é quando tiramos dois — o primeiro bastante, e o segundo muito pouco concentrado — e, a partir daí, chegamos a mostos de concentrações distintas a partir da ‘blendagem’ dos dois em proporções diferentes.”
Estilos produzidos
Pedro informa que é possível fazer qualquer estilo de cerveja com esse processo, lembrando que as características do malte irão ser similares, mesmo que em concentrações e intensidades diferentes. Se o mosto for pensado para resultar em uma Imperial Stout, esclarece o cervejeiro, as cervejas derivadas terão características sensoriais de tosta e cor, mesmo que mais discretas. “No caso da Wonderland, chegamos ao mosto de uma Imperial IPA e em uma base bem mais leve, que passou pela acidificação com Lactobacillus para gerar uma série de Sours.” Ainda em relação ao estilo, também assegura que, a princípio, não existe nenhum estilo que não se possa fazer através do processo. “Mas o que importa no momento da tomada de decisão é se as cervejas variantes fazem sentido, se elas alcançam o objetivo comercial ou sensorial projetado.”
Características resultantes
Ele também garante que uma cerveja feita com o processo não necessariamente terá uma característica mais “leve” e muito menos que isso acabe sendo uma marca típica. “Mas, para fazer sentido, vamos ter, sim, ao menos uma cerveja resultante com menor potencial
O processo tem origens seculares e se constitui de alquimias e misturas envolvendo grãos e mostos para extrair cervejas. Pedro Fraga, sócio-fundador, cervejeiro e diretor de comunicação da Wonderland Brewery (RJ), compartilha aqui algumas noções.
alcoólico. Por exemplo, a inglesa Fuller’s é conhecida por produzir cervejas dessa forma. Eles tiram dois mostos de uma produção, um bastante concentrado — que até poderia resultar em uma English Barley Wine, por exemplo — e um muito pouco concentrado, que faria uma cerveja leve e, possivelmente, desinteressante demais.”
Com os dois mostos, revela, a cervejaria chega a três cervejas, porém nenhuma delas é feita com esses mostos “puros”, que são alcançados por meio da mistura deles em concentrações diferentes. “Assim, eles produzem a ESB, que tem uma mistura de mostos mais concentrada, a London Pride, que é um pouco menos, e a Chiswick Bitter, bem leve. Em termos técnicos, o primeiro mosto tem concentração de aproximadamente 19 graus Plato e o segundo de apenas 5 °P, produzindo cervejas com aproximadamente 14, 10 e 8. Lembrando que Plato é uma medida de concentração de extratos solúveis do mosto, e não teor alcoólico.”
Concentração e volume
Fazendo as contas e tendo conhecimento do processo e do equipamento usado, é possível estimar com precisão a produção desses mostos, afirma Pedro. Até porque não é apenas uma questão da concentração, mas também do volume de mosto produzido com aquela concentração, acrescenta. “Comercialmente e tecnicamente, pode não fazer sentido ter um volume muito baixo de um dos mostos que seja insuficiente para fazer os blends, ou pode não gerar um volume grande o suficiente para ter uma fervura adequada no equipamento utilizado.”
Segundo ele, é difícil acertar tudo de primeira, mesmo fazendo as contas certas, especialmente quando não se tem tanta experiência no processo. “A gente teve uma surpresa — positiva, ainda bem — de termos tido uma eficiência muito superior na extração do primeiro mosto do que a esperada com um equipamento que conhecíamos. Pudemos misturar os dois mostos para alcançar os objetivos e acabamos com um volume de segundo mosto para produzir as Sours acima do esperado.”
Histórico da técnica
Segundo informações do especialista, o processo parti-gyle já era feito na Idade Média, mesmo que não usando essa nomenclatura, e pode ser até mais antigo. Mas o fato é que ele é bastante ligado à Inglaterra da Era Vitoriana, quando os cervejeiros melhoraram os processos que já vinham se desenvolvendo desde a Revolução Industrial — o que possibilitou uma maior variedade de produtos e um menor desperdício de malte. Em relação à realidade brasileira, afirma que o processo não é nem um pouco comum. Aliás, atualmente, nem fora do país é tão comum. Ele acredita que isso se deve aos avanços tecnológicos em equipamentos e práticas que substituem a necessidade do processo, “por mais que ainda possa fazer algum sentido industrial pela eficiência na extração de (quase) todo açúcar presente nos grãos, otimização na compra de maltes e em controle da consistência do produto final em casos específicos”.
Vantagens e dicas
A técnica, segundo diz, é mais comum em produções caseiras, apesar de mais trabalhosa, do que em cervejarias. Entre as vantagens estaria o controle de consistência. “Além disso, você acaba otimizando as variedades de maltes usados em diferentes cervejas.” Dicas? Primeiro, é preciso saber bem com qual objetivo vai se produzir a cerveja. Pode ser que seja mais interessante adequar os gastos com malte e extrair mais açúcares numa produção única, mas pode ser interessante ter um dia mais longo de trabalho e levar três cervejas para fermentação se tiver equipamento necessário para trabalhar com mostos diferentes não simultaneamente, alerta o técnico. “Em termos de resultado, especialmente para os caseiros, é uma ótima saída para usar lúpulos diferentes, utilizar leveduras ou temperaturas de fermentação diferentes, chegar a cervejas bem distintas até no teor alcoólico com a mesma cama de maltes, por meio da experimentação”, conclui.