Escola americana
Segunda matéria da série sobre escolas cervejeiras
Muitos consideram o que o gatilho da explosão mundial da nova cena cervejeira aconteceu nos EUA, a partir dos anos 1970, quando deflagrou uma verdadeira revolução mundial. Mas nem tudo começou com as cervejas lupuladas e até extremas, que hoje caracterizam a escola americana de cerveja: primeiro vieram os estilos mais tradicionais. A partir daí, veio toda a redescoberta cervejeira — puxada pelo lúpulo. É o que conta Luís Celso Jr., sommelier de cervejas e jornalista, que fala aqui sobre o tema.
Também professor do Instituto da Cerveja Brasil (ICB), consultor, juiz de concursos nacionais e internacionais, fundador do bardocelso. com, ele afirma que a história da cerveja nos Estados Unidos começa antes mesmo de ingleses dominarem a região: “A primeira cervejaria com fins comerciais comprovados das Américas foi fundada por holandeses em 1612 em Nova Amsterdam, onde hoje fica a ilha de Manhattan, em Nova York.” No entanto, neste início, existiam muitas dificuldades para a fabricação de cerveja. Uma das principais era a falta de matéria-prima adequada, porque, mesmo sendo um país basicamente agrícola, cevada e lúpulo não estavam na lista de culturas da época. Então, conta Celso, a produção ficou restrita aos maiores centros, com insumos importados ou improvisados, “como o uso de amido de vegetais, o que dá origem à cerveja de abóbora (Pumpkin Ale), por exemplo”.
Influência alemã inicial
Segundo ele, a segunda onda da cerveja na região rendeu mais frutos, acontecendo nos anos 1800, com a imigração de europeus para a costa Leste, entre eles holandeses e alemães, que fundaram suas cervejarias. Essa influência foi mais forte e a cultura cervejeira floresceu: “Em meados do século, a Lager alemã, a cerveja Pilsen, chegou aos Estados Unidos fazendo grande sucesso. No final do século, a região de Nova York tinha várias cervejarias, grande parte de imigrantes alemães”. Porém, recapitula, vieram a Lei Seca e as duas grandes guerras mundiais no século XX, levando à total parada da produção cervejeira e interrupção da cultura cervejeira.
Lei Seca e efeitos
Com a Lei Seca, a Prohibition, foi interrompida toda a produção e venda de qualquer tipo de álcool nos Estados Unidos de 1920 a 1933 — pelo menos oficialmente. Ela foi o resultado de pressões de várias partes e organizações da sociedade contra o alcoolismo. “No entanto, a cerveja meio que ‘pagou o pato’, porque o verdadeiro vilão era o Bourbon.” Assim, todas as cervejarias tiveram que sobreviver de outras formas ou fechar as portas, justamente em um momento em que a indústria cervejeira começava a se desenvolver efetivamente. “O impacto na cultura cervejeira foi que muitos desacostumaram com a bebida e toda aquela cultura cervejeira que florescia parou. E foi, aos poucos, sendo esquecida.”
Retomada cervejeira
Quando a Lei Seca caiu, em 1933, conta Celso, a retomada da indústria cervejeira encontrou um país que havia perdido o costume de beber cerveja, com a ascensão do refrigerante e uma geração inteira sem saber o que era a bebida. “Além disso, o país estava quebrado por conta da Grande Depressão, criada pela crise da bolsa, em 1929.” Diante desse quadro, o jeito para tentar vender novamente foi, de um lado, suavizar a cerveja, e, de outro, barateá-la com uso de adjuntos como o milho, criando um estilo novo a partir da Pilsen, que fazia muito sucesso antes da parada total, lembra o sommelier. “Era leve, refrescante e se prestava muito bem à massificação do consumo. Era a American Lager.”
A revolução artesanal
Segundo Celso, por décadas o estilo cresceu e se fortaleceu, enquanto a cultura cervejeira em si ficou bastante esquecida. “Isso até a década de 1970, quando o país começou a viver o que chamamos de ‘renascimento da cerveja artesanal’, resgatando essa cultura cervejeira do esquecimento.” O especialista assinala que, a partir daí, novas cervejarias de pioneiros começam a produzir estilos tradicionais, resgatando métodos de fabricação e lutando contra a produção em grande escala. “Mas tudo isso ainda era pouco e muitos deles foram à falência. Os poucos que sobraram sobreviveram para ver o jogo mudar no final da década, com um incentivo fiscal para as cervejarias de pequeno porte.”
O fato, lembra, causou um bom impacto no preço final da cerveja artesanal, aumentou o consumo e mais cervejarias começaram a abrir. No final dos anos 80, os impostos foram aumentados para as grandes cervejarias, mas mantidos mais baixos para as pequenas. “É quando a cerveja artesanal começa a decolar de verdade.”
Surge a escola americana
Na sua avaliação, esse processo de renascimento da cerveja nos EUA é, em grande parte, o que vai formar a escola americana de cervejas. “É nesse período, por meio do resgate de estilos, elaboração de novas interpretações deles, que os americanos criam volume e a personalidade que vemos hoje nas cervejas norte-americanas.” Segundo seus dados, o mercado de cervejas lá é o maior da cerveja artesanal no mundo, num país que é o segundo maior produtor de cervejas mundial. Ele informa que números divulgados recentemente apontam que o mercado artesanal encolheu um pouco: de 13,6% de market share dos EUA em 2019, passou para 12,6% no fechamento de 2020. O valor em dólares também caiu de 25% para 23,6% de todo o dinheiro de cerveja que circula naquele país. O motivo, claro, foi o impacto da pandemia de Covid-19.
Inspiração inglesa
Para ele, os cervejeiros americanos estão longe da tendência tradicional de cerveja. Pelo contrário: eles são bem “avançadinhos, em geral”, acredita. “Na ausência de uma tradição cervejeira própria para se apegar, eles se inspiram em diversas tradições, principalmente a inglesa. Mas não ficaram só reproduzindo esses estilos e formas de fabricação, o que poderia caracterizar um certo tradicionalismo. Pelo contrário, evoluíram em cima dessa base para criar algo peculiar, próprio e com sua personalidade.”
Nesse processo, o velho estilo English Pale Ale, de lupulagem herbácea e terrosa, foi resgatado, mas não demorou muito para receber lúpulos norte-americanos, mais frutados, cítricos e resinosos, tornando-se uma American Pale Ale, observa o estudioso. “Assim, essa nova tradição foi evoluindo a partir da tradição cervejeira do Velho Mundo.”
Entre as principais escolas
Segundo ele, existe muita bibliografia sobre o tema, principalmente as mais antigas, porém, que não consideram a cultura cervejeira norte-americana uma das grandes tradições cervejeiras mundiais. “Falo de livros até do final do século XX. No entanto, vemos um grande desenvolvimento a partir dos anos 70 e 80 dessa escola, em volume e em personalidade. Tanto que hoje a maior parte dos especialistas e dos livros considera, sim, ela como uma das quatro grandes tradições cervejeiras.”
Características e lúpulo marcante
O sommelier afirma que, em busca de uma personalidade, os americanos tentaram várias coisas. Os primeiros estilos, como California Common, estavam muito ligados à tradição inglesa — a ideia era fazer quase uma Ale com o que se tinha à mão, como levedura Lager fermentando em temperaturas mais altas e tanques abertos. “Mas não demorou muito para descobrirem que o lúpulo local poderia ser algo bem marcante. O primeiro estilo mais lupulado, que dava a ‘pinta’ do que viria no futuro, foi o American Pale Ale, produzido pela primeira vez pela Anchor Brewing, de São Francisco, na Califórnia, em 1975. Mas foi a Sierra Nevada, em 1980, que popularizou o conceito.”
Na sua avaliação os C Hops devem ser ainda os grupos mais consumido: Cascade, Citra, Centennial, Chinook e Columbus, embora variedades mais recentes, como Galaxy (australiano), Mosaic, Willamette (derivado do Fuggle inglês) venham ganhando muito espaço. Conclusão: o intenso uso do lúpulo norte-americano, mais frutados, cítricos e resinosos, acabou se tornando uma das principais características dessa escola — talvez até a mais visível.
Principais estilos da escola
Para Celso, é difícil definir quais são os principais estilos dessa escola, porque os critérios mudam, podendo ser por relevância ou volume de produção. “Mas acho que podemos considerar alguns, usando um pouco dos dois critérios: as hoppy beers têm como exemplar máximo a American IPA e suas variações, ocupando cerca de 1/3 do mercado — então são supervolumosas e relevantes. E dentro deste pacote estão a American IPA, as NE IPAs, também conhecidas como Juicy ou Hazy IPAs, Session IPAs, Double IPAs, Black IPAs e por aí vai.”
Porém, lembra que também existem outros estilos, como as Lagers leves, considerando que a American Lager é uma das mais emblemáticas. “As American Amber Lagers, como Brooklyn Lager e Samuel Boston Lager, também têm muito volume e história para contar.” Além disso, lembra as Sours, que são as novas IPAs, segundo afirma. “Elas já têm um volume relevante por lá (EUA) e esse grupamento, com muitos estilos dentro, é bastante importante. American Sour Ale, American Fruited Sour Ale, Brett Beers, Wood and Barrel Aged Sour Beers…” Por último, acrescenta as cervejas maturadas em madeira e suas variações — as Wood and Barrel Aged Beers.
Cervejas extremas
“Como todo o filho adolescente, também houve um período em que muitos cervejeiros optaram por um certo extremismo, exagero nas produções.” Foi quando, revela, surgiram as big beers, ou extreme beers, como a Double IPA, que leva ao limite o amargor, com corpo alto e elevado teor alcoólico. Então há, sim, muitos exageros, principalmente em amargor e álcool, em alguns estilos — e isso também acabou virando característico. “Mas, veja, não quer dizer que não existam cervejas leves, como a própria American Lager ou as Session Beers.”
Celso também ressalta que, mais recentemente, os EUA têm sido responsáveis por resgatar técnicas, como, por exemplo, as cervejas em barril, a partir da inspiração nas Old Ales inglesas, e as Sours, a partir, principalmente, da inspiração nas Lambics belgas. “E isso tem influenciado o mundo inteiro com seu jeito de fazer cerveja, mesmo as escolas mais tradicionais.”
Rótulos sugeridos
Para ele, as sugestões variam um pouco de acordo com o gosto “do freguês”, é claro — e da disponibilidade dele na região onde vive. “Aqui no Brasil, há até uma boa disponibilidade de rótulos clássicos. Sempre recomendo que conheçamos os clássicos para poder entender essa base. A Anchor Steam Beer, California Common, o primeiro rótulo do primeiro estilo originariamente americano, é obrigatória; Sierra Nevada Pale Ale, a mais famosa American Pale Ale, responsável pela popularização das hoppy beers; New Belgian Vodoo Ranger e Fat Tire, assim como Firestone Walker Union Jack e Easy Jack, também são ótimas pedidas. Goose Island Sofie (Sour), Brooklyn Black Ops (Wood-and Barrel Aged), e por aí vai.”