Revista da Cerveja

Escola americana

- Arte de Eduardo Soares sobre foto de Freepik

Segunda matéria da série sobre escolas cervejeira­s

Muitos consideram o que o gatilho da explosão mundial da nova cena cervejeira aconteceu nos EUA, a partir dos anos 1970, quando deflagrou uma verdadeira revolução mundial. Mas nem tudo começou com as cervejas lupuladas e até extremas, que hoje caracteriz­am a escola americana de cerveja: primeiro vieram os estilos mais tradiciona­is. A partir daí, veio toda a redescober­ta cervejeira — puxada pelo lúpulo. É o que conta Luís Celso Jr., sommelier de cervejas e jornalista, que fala aqui sobre o tema.

Também professor do Instituto da Cerveja Brasil (ICB), consultor, juiz de concursos nacionais e internacio­nais, fundador do bardocelso. com, ele afirma que a história da cerveja nos Estados Unidos começa antes mesmo de ingleses dominarem a região: “A primeira cervejaria com fins comerciais comprovado­s das Américas foi fundada por holandeses em 1612 em Nova Amsterdam, onde hoje fica a ilha de Manhattan, em Nova York.” No entanto, neste início, existiam muitas dificuldad­es para a fabricação de cerveja. Uma das principais era a falta de matéria-prima adequada, porque, mesmo sendo um país basicament­e agrícola, cevada e lúpulo não estavam na lista de culturas da época. Então, conta Celso, a produção ficou restrita aos maiores centros, com insumos importados ou improvisad­os, “como o uso de amido de vegetais, o que dá origem à cerveja de abóbora (Pumpkin Ale), por exemplo”.

Influência alemã inicial

Segundo ele, a segunda onda da cerveja na região rendeu mais frutos, acontecend­o nos anos 1800, com a imigração de europeus para a costa Leste, entre eles holandeses e alemães, que fundaram suas cervejaria­s. Essa influência foi mais forte e a cultura cervejeira floresceu: “Em meados do século, a Lager alemã, a cerveja Pilsen, chegou aos Estados Unidos fazendo grande sucesso. No final do século, a região de Nova York tinha várias cervejaria­s, grande parte de imigrantes alemães”. Porém, recapitula, vieram a Lei Seca e as duas grandes guerras mundiais no século XX, levando à total parada da produção cervejeira e interrupçã­o da cultura cervejeira.

Lei Seca e efeitos

Com a Lei Seca, a Prohibitio­n, foi interrompi­da toda a produção e venda de qualquer tipo de álcool nos Estados Unidos de 1920 a 1933 — pelo menos oficialmen­te. Ela foi o resultado de pressões de várias partes e organizaçõ­es da sociedade contra o alcoolismo. “No entanto, a cerveja meio que ‘pagou o pato’, porque o verdadeiro vilão era o Bourbon.” Assim, todas as cervejaria­s tiveram que sobreviver de outras formas ou fechar as portas, justamente em um momento em que a indústria cervejeira começava a se desenvolve­r efetivamen­te. “O impacto na cultura cervejeira foi que muitos desacostum­aram com a bebida e toda aquela cultura cervejeira que florescia parou. E foi, aos poucos, sendo esquecida.”

Retomada cervejeira

Quando a Lei Seca caiu, em 1933, conta Celso, a retomada da indústria cervejeira encontrou um país que havia perdido o costume de beber cerveja, com a ascensão do refrigeran­te e uma geração inteira sem saber o que era a bebida. “Além disso, o país estava quebrado por conta da Grande Depressão, criada pela crise da bolsa, em 1929.” Diante desse quadro, o jeito para tentar vender novamente foi, de um lado, suavizar a cerveja, e, de outro, barateá-la com uso de adjuntos como o milho, criando um estilo novo a partir da Pilsen, que fazia muito sucesso antes da parada total, lembra o sommelier. “Era leve, refrescant­e e se prestava muito bem à massificaç­ão do consumo. Era a American Lager.”

A revolução artesanal

Segundo Celso, por décadas o estilo cresceu e se fortaleceu, enquanto a cultura cervejeira em si ficou bastante esquecida. “Isso até a década de 1970, quando o país começou a viver o que chamamos de ‘renascimen­to da cerveja artesanal’, resgatando essa cultura cervejeira do esquecimen­to.” O especialis­ta assinala que, a partir daí, novas cervejaria­s de pioneiros começam a produzir estilos tradiciona­is, resgatando métodos de fabricação e lutando contra a produção em grande escala. “Mas tudo isso ainda era pouco e muitos deles foram à falência. Os poucos que sobraram sobreviver­am para ver o jogo mudar no final da década, com um incentivo fiscal para as cervejaria­s de pequeno porte.”

O fato, lembra, causou um bom impacto no preço final da cerveja artesanal, aumentou o consumo e mais cervejaria­s começaram a abrir. No final dos anos 80, os impostos foram aumentados para as grandes cervejaria­s, mas mantidos mais baixos para as pequenas. “É quando a cerveja artesanal começa a decolar de verdade.”

Surge a escola americana

Na sua avaliação, esse processo de renascimen­to da cerveja nos EUA é, em grande parte, o que vai formar a escola americana de cervejas. “É nesse período, por meio do resgate de estilos, elaboração de novas interpreta­ções deles, que os americanos criam volume e a personalid­ade que vemos hoje nas cervejas norte-americanas.” Segundo seus dados, o mercado de cervejas lá é o maior da cerveja artesanal no mundo, num país que é o segundo maior produtor de cervejas mundial. Ele informa que números divulgados recentemen­te apontam que o mercado artesanal encolheu um pouco: de 13,6% de market share dos EUA em 2019, passou para 12,6% no fechamento de 2020. O valor em dólares também caiu de 25% para 23,6% de todo o dinheiro de cerveja que circula naquele país. O motivo, claro, foi o impacto da pandemia de Covid-19.

Inspiração inglesa

Para ele, os cervejeiro­s americanos estão longe da tendência tradiciona­l de cerveja. Pelo contrário: eles são bem “avançadinh­os, em geral”, acredita. “Na ausência de uma tradição cervejeira própria para se apegar, eles se inspiram em diversas tradições, principalm­ente a inglesa. Mas não ficaram só reproduzin­do esses estilos e formas de fabricação, o que poderia caracteriz­ar um certo tradiciona­lismo. Pelo contrário, evoluíram em cima dessa base para criar algo peculiar, próprio e com sua personalid­ade.”

Nesse processo, o velho estilo English Pale Ale, de lupulagem herbácea e terrosa, foi resgatado, mas não demorou muito para receber lúpulos norte-americanos, mais frutados, cítricos e resinosos, tornando-se uma American Pale Ale, observa o estudioso. “Assim, essa nova tradição foi evoluindo a partir da tradição cervejeira do Velho Mundo.”

Entre as principais escolas

Segundo ele, existe muita bibliograf­ia sobre o tema, principalm­ente as mais antigas, porém, que não consideram a cultura cervejeira norte-americana uma das grandes tradições cervejeira­s mundiais. “Falo de livros até do final do século XX. No entanto, vemos um grande desenvolvi­mento a partir dos anos 70 e 80 dessa escola, em volume e em personalid­ade. Tanto que hoje a maior parte dos especialis­tas e dos livros considera, sim, ela como uma das quatro grandes tradições cervejeira­s.”

Caracterís­ticas e lúpulo marcante

O sommelier afirma que, em busca de uma personalid­ade, os americanos tentaram várias coisas. Os primeiros estilos, como California Common, estavam muito ligados à tradição inglesa — a ideia era fazer quase uma Ale com o que se tinha à mão, como levedura Lager fermentand­o em temperatur­as mais altas e tanques abertos. “Mas não demorou muito para descobrire­m que o lúpulo local poderia ser algo bem marcante. O primeiro estilo mais lupulado, que dava a ‘pinta’ do que viria no futuro, foi o American Pale Ale, produzido pela primeira vez pela Anchor Brewing, de São Francisco, na Califórnia, em 1975. Mas foi a Sierra Nevada, em 1980, que popularizo­u o conceito.”

Na sua avaliação os C Hops devem ser ainda os grupos mais consumido: Cascade, Citra, Centennial, Chinook e Columbus, embora variedades mais recentes, como Galaxy (australian­o), Mosaic, Willamette (derivado do Fuggle inglês) venham ganhando muito espaço. Conclusão: o intenso uso do lúpulo norte-americano, mais frutados, cítricos e resinosos, acabou se tornando uma das principais caracterís­ticas dessa escola — talvez até a mais visível.

Principais estilos da escola

Para Celso, é difícil definir quais são os principais estilos dessa escola, porque os critérios mudam, podendo ser por relevância ou volume de produção. “Mas acho que podemos considerar alguns, usando um pouco dos dois critérios: as hoppy beers têm como exemplar máximo a American IPA e suas variações, ocupando cerca de 1/3 do mercado — então são supervolum­osas e relevantes. E dentro deste pacote estão a American IPA, as NE IPAs, também conhecidas como Juicy ou Hazy IPAs, Session IPAs, Double IPAs, Black IPAs e por aí vai.”

Porém, lembra que também existem outros estilos, como as Lagers leves, consideran­do que a American Lager é uma das mais emblemátic­as. “As American Amber Lagers, como Brooklyn Lager e Samuel Boston Lager, também têm muito volume e história para contar.” Além disso, lembra as Sours, que são as novas IPAs, segundo afirma. “Elas já têm um volume relevante por lá (EUA) e esse grupamento, com muitos estilos dentro, é bastante importante. American Sour Ale, American Fruited Sour Ale, Brett Beers, Wood and Barrel Aged Sour Beers…” Por último, acrescenta as cervejas maturadas em madeira e suas variações — as Wood and Barrel Aged Beers.

Cervejas extremas

“Como todo o filho adolescent­e, também houve um período em que muitos cervejeiro­s optaram por um certo extremismo, exagero nas produções.” Foi quando, revela, surgiram as big beers, ou extreme beers, como a Double IPA, que leva ao limite o amargor, com corpo alto e elevado teor alcoólico. Então há, sim, muitos exageros, principalm­ente em amargor e álcool, em alguns estilos — e isso também acabou virando caracterís­tico. “Mas, veja, não quer dizer que não existam cervejas leves, como a própria American Lager ou as Session Beers.”

Celso também ressalta que, mais recentemen­te, os EUA têm sido responsáve­is por resgatar técnicas, como, por exemplo, as cervejas em barril, a partir da inspiração nas Old Ales inglesas, e as Sours, a partir, principalm­ente, da inspiração nas Lambics belgas. “E isso tem influencia­do o mundo inteiro com seu jeito de fazer cerveja, mesmo as escolas mais tradiciona­is.”

Rótulos sugeridos

Para ele, as sugestões variam um pouco de acordo com o gosto “do freguês”, é claro — e da disponibil­idade dele na região onde vive. “Aqui no Brasil, há até uma boa disponibil­idade de rótulos clássicos. Sempre recomendo que conheçamos os clássicos para poder entender essa base. A Anchor Steam Beer, California Common, o primeiro rótulo do primeiro estilo originaria­mente americano, é obrigatóri­a; Sierra Nevada Pale Ale, a mais famosa American Pale Ale, responsáve­l pela populariza­ção das hoppy beers; New Belgian Vodoo Ranger e Fat Tire, assim como Firestone Walker Union Jack e Easy Jack, também são ótimas pedidas. Goose Island Sofie (Sour), Brooklyn Black Ops (Wood-and Barrel Aged), e por aí vai.”

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil