O Código de Hamurabi
OImpério Babilônico foi um dos marcos da Antiguidade e unificou os povos da Mesopotâmia. Essa região, cortada pelos rios Tigre e Eufrates, é considerada o berço da antiguidade civilizatória e por ela passaram diversos povos, incluindo os sumérios — a eles é creditado o descobrimento da cerveja e os primeiros registros sobre a bebida, incluindo o Hino a Ninkasi, deusa da cerveja. Hamurabi foi o sexto rei babilônico (de 1792 a 1750 a.C.) e foi o responsável pela fundação do Império que dominou os povos mesopotâmicos. No intuito de estender e controlar seu domínio, criou um código de leis que levou seu nome — e que inclui a cerveja.
Unificando o Império
De origem semita, Hamurabi, Hammurabi ou Kammu-Rabi conquistou os reinos Sumério, da Assíria, Larsa, Eshunna e Mari por meio de guerras e acordos. Além do código que imortalizou seu nome, Hamurabi foi responsável por fortificar a capital com muralhas, restaurar templos importantes da região, instituir impostos para aplicar em obras públicas, investir em canais de irrigação e permitir a liberdade de culto para os povos conquistados. O domínio dos territórios, claro, fez com que os babilônios incorporassem muitas das habilidades dos povos dominados, incluindo as habilidades cervejeiras dos sumérios.
Acredita-se que o Código de Hamurabi tenha sido feito por volta de 1772 a.C. Esse conjunto de regras teve também a função de unificar o império, estabelecendo normas para questões civis, penais e administrativas. Com leis comuns, havia a tentativa de estabelecer uma cultura comum — por isso algumas antigas leis, mantidas pela tradição oral e conhecidas por diversos povos, foram integradas por Hamurabi. É um dos mais importantes códigos jurídicos da antiguidade e por muitos anos foi considerado o primeiro código de leis escritas — posteriormente, foram descobertos outros, também mesopotâmicos, mais antigos e que provavelmente influenciaram o de Hamurabi, como os códigos de Urukagina, Ur-Nammu e Lipit-Ishtar.
“Implantar justiça na terra”
O texto tem 281 artigos — a numeração vai até 282, mas o artigo 13 foi pulado, por superstições já daquela época. O código
orientava regras e costumes para toda a região, dando conta das principais questões sociais, como propriedade e comércio, família e trabalho. Cada uma das três classes sociais do império é retratada na lei — proprietários de terras (Awilum), homens livres (Muskênum) e homens escravizados (Wardum).
Para além dos artigos, Hamurabi usa este espaço para registrar sua presença e afirma que o código tem por objetivo “implantar justiça na terra”, “para que o forte não oprima o fraco” e “propiciar o bem-estar do povo”. As penas para infrações eram baseadas na rudimentar Lei de Talião: “olho por olho, dente por dente”, ou seja, punindo o criminoso de forma equivalente ao crime cometido. Mas havia diferenças nas penas para cada classe social, dependendo de quem havia sido o ofensor e o ofendido — se o prejudicado fosse de classe superior, a pena era mais severa. Também havia diferenças para punições dependendo do gênero, por exemplo, nos casos de adultério.
Algumas questões eram resolvidas apoiadas na superstição, no chamado “julgamento por provação” — como o artigo 2º, que estabelece que a decisão de inocência ou não do acusado está condicionada à sobrevivência depois de ser jogado num rio. Ao mesmo tempo, este é um dos primeiros exemplos de leis a considerar a pessoa acusada como inocente até que a culpa seja provada. Mas também a condenação à morte era aplicada para diversas questões — e isso incluía questões cervejeiras.
Tabernas babilônicas
A popularidade da cerveja na região mesopotâmica não mudou com a chegada de Hamurabi, então ele tratou de regulamentar sua venda. A própria inclusão da atividade das tabernas no seu código indica a importância social da cerveja.
Sim, apesar de algumas traduções indicarem apenas como “bebida”, é consenso entre diversos pesquisadores do setor que o líquido indicado no código era a cerveja primitiva conhecida. “O guia Oxford da cerveja”, editado por Garrett Oliver, registra que Hamurabi classificou a cerveja em 20 diferentes categorias, oito delas produzidas somente de cevada e as demais por uma mistura de grãos, sendo a mais valiosa a cerveja de espelta (um grão parente do trigo).
“Havia também cervejas puras de trigo, cervejas claras, cervejas vermelhas e cervejas escuras — assim como uma cerveja envelhecida para exportação, principalmente para o Egito, onde a sede por cerveja expandia-se rapidamente”, regista a obra. “Ele então impôs o controle de preços tanto aos cervejeiros como aos taberneiros, e as primeiras leis da cerveja foram firmadas.” As leis envolvendo tabernas e cerveja estão nos artigos 108 a 111:
108º — Se uma taberneira não aceita grãos de acordo com o preço bruto no pagamento da cerveja, mas aceita dinheiro, e o preço da bebida for menor do que o do grão, deverá ser condenada e jogada na água.
109º — Se na casa de uma taberneira se reunirem conspiradores e esses conspiradores não forem detidos e levados à Corte, a taberneira deverá ser morta.
110º — Se uma irmã de Deus [sacerdotisa] abrir uma taberna ou entrar em uma taberna para beber, esta mulher deverá ser queimada até a morte. 111º — Se uma taberneira fornece 60 ka de bebida usakami, deverá receber ao tempo da colheita 50 ka de grãos. Assim, cobrar demais pela cerveja ou aceitar dinheiro, e não grãos, como pagamento eram infrações punidas com afogamento. Nas cláusulas do código para tabernas, foram usados termos direcionados ao sexo feminino — isso porque, desde a Suméria até boa parte da Idade Média, o processo cervejeiro estava a cargo das mulheres, assim como a produção de pão e demais outras atividades culinárias. “Algumas mulheres também utilizavam suas habilidades de produção de cerveja para conseguir um pequeno lucro através da operação de tabernas ou bares onde a cerveja era tanto produzida como vendida no copo”, registra “O guia”. Então eram taberneiras as citadas na lei. “Essas tabernas, muito parecidas com as europeias que se seguiriam, frequentemente serviam como bordéis, onde a taberneira e a cafetina eram a mesma pessoa.”
O Código de Hamurabi tem sua enorme importância pela implementação de um regramento jurídico sobre as relações sociais entre os habitantes do Império Babilônico. Foi uma das inspirações para que as civilizações seguintes continuassem a se organizar com leis escritas, substituindo a tradição oral. E é um registro da incontestável presença da cerveja nas primeiras sociedades.
Monumento em pedra
O Código de Hamurabi foi encontrado em 1901 por uma delegação francesa de arqueólogos dirigida por Jacques de Morgan. A descoberta foi em Susa, atual Irã — provavelmente foi saqueado e levado para a região como espólio de guerra. Estima-se que as seções apagadas do código tenham sido feitas por estes conquistadores.
O monumento é uma pedra escura de diorito e tem 2,25 m de altura, 1,6 m de circunferência na parte superior e 1,9 m na base. Toda a superfície está inscrita com texto cuneiforme. São 46 colunas de 3,6 mil linhas, que reúnem a jurisprudência do governo babilônico daquele tempo. A tradução do cuneiforme foi feita por Jean Vicent Scheil.
No topo estão retratados Hamurabi e uma segunda figura — identificada por algumas fontes como sendo Shamash, deus dos oráculos e da justiça, e por outras como a divindade Marduk. Tudo indica que a estrutura foi planejada para ficar exposta, facilitando o acesso às leis e também servindo de propaganda exaltando Hamurabi. Hoje o Código de Hamurabi está exposto no Museu do Louvre, em Paris, na França.
Referências principais
“Código de Hamurabi”, por Direitos Humanos. net. Disponível em dhnet.org.br/direitos/anthist/ hamurabi.htm
“Larousse da cerveja”, Ronaldo Morado (Alaúde, 2017)
“O guia Oxford da cerveja”, Garrett Oliver (ed.) e Iron Mendes (ed. edição brasileira) (Blucher, 2020)
“The Code of Hammurabi”, traduzido por L. W. King. Disponível em avalon.law.yale.edu/ancient/ hamframe.asp