Trapista brasileira
Por Daniel Taveira Oberlaender, engenheiro químico pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Processos Químicos e Bioquímicos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e cervejeiro na Cervejaria Habeas Copos em Niterói/RJ.
Pesquisa revela produção histórica de trapista no país
Em 12 de setembro de 1904, chegava ao Brasil o primeiro grupo de monges da Ordem Trapista (Ordem Cisterciense da Estrita Observância) para ocupar o Mosteiro Nossa Senhora de Maristela, em Tremembé/SP. Os monges vieram da França, da Abadia de Notre-Dame de Sept-Fons. Neste grupo inicial de 14 padres e irmãos/ frades, estava o padre Léopold Masl (nome de batismo: Jean Masl), monge da Ordem, com 54 anos.[3,
6, 7]
O mosteiro N. Sra. de Maristela foi a primeira instalação trapista da América Latina. O mosteiro surgiu da adaptação das estruturas da antiga propriedade que havia no local, a Fazenda das Palmeiras do Barão de Lessa, e foi a casa dos monges até novembro de 1931.[6, Naturalmente,
7] para suportar a longa missão longe de casa, os monges trouxeram e mantiveram algumas de suas tradições, como a produção de bebidas e comidas encontradas na França e comumente consumidas no dia a dia deles.[1]
Durante o período em que os trapistas estiveram em Tremembé, no Vale do Paraíba, foi notável a transformação e o desenvolvimento da região, principalmente na agricultura, com o desenvolvimento da rizicultura.[3,6] As marcas da presença deles são observadas até hoje. Eles trouxeram técnicas e conhecimentos avançados que auxiliaram o desenvolvimento econômico da região e valorização do trabalhador local.[7] Nas palavras do presidente da República à época da chegada dos Trapistas ao Brasil, Rodrigues Alves: “Não só uma, mas antes 20 Trappas [mosteiros Trapistas] quizéra [sic] eu ver estabelecidas no Brasil”.[3]
O mosteiro de N. Sra. de Maristela possuía, na parte de trás do terreno, locais de apoio para o desenvolvimento dos trabalhos da comunidade, como capela, cocheira, escola, carpintaria, lavanderia, tulha, padaria e uma adega.[1,7] Assim, poderiam pôr em prática o mote da Ordem, “Ora et Labora”. O responsável pela produção de bebidas e pela adega do mosteiro era o monge Léopold Masl.[1, Conforme relatos
6, 7] históricos, ele possuía grande habilidade na produção de licores, hidromel (os monges colhiam o próprio mel, todo ano “centenas de quilos de brilhante e saboroso mel”, sob responsabilidade dos irmãos trapistas Theodule e Vincent), cerveja e vinhos para consumo próprio dos monges e para os visitantes.[1,6,7] Sim, há relato de produção de cerveja no mosteiro! Havia visitantes que já conheciam a qualidade das bebidas lá produzidas e eram acolhidos por Léopold em sua adega para deliciosas provas. Uma dessas testemunhas é um leigo, de fora da Ordem Trapista, que auxiliava na adega de Léopold, Tonico Amaral. Também auxiliava a produção de bebidas o irmão trapista Marie Paulet, que, quando não estava trabalhando no bananal, ajudava (e degustava) na adega do padre Léopold.[1]
Existem diversos registros fotográficos dos monges e do mosteiro (Figuras 1, 2 e 3), mas não há uma foto com uma identificação objetiva do Pe. Léopold. Porém, cruzando outras fotos de diferentes anos com outros monges identificados e com as características físicas descritas do Pe. Léopold, especula-se que ele seja o destacado em vermelho na Figura 1.
Aqui cabe um parêntese para definir o que seria uma cerveja trapista. Cerveja trapista não deve ser considerada um estilo específico, mas sim algo equivalente a uma denominação de origem ou indicação de procedência, conforme definem a International Trappist Association (ITA) e o livro “The Oxford companion to beer”.
É simplesmente uma cerveja que [5,8] é produzida por trapistas dentro da área do mosteiro. Segundo a própria ITA, qualquer produto produzido pela comunidade trapista é um produto trapista e pode-se utilizar dessa denominação.[4] A concessão do selo Authentic Trappist Product pela ITA é outra questão, que envolve trâmites burocráticos de inscrição do mosteiro trapista na associação e cumprimento de regras específicas. Cabe ressaltar que a associação não indica o exercício de suas atividades antes de 1998 (apesar de ter sido oficialmente instituída em 09/12/1997 e a solicitação oficial para criação do selo ATP pela associação ter sido efetuada, primeiramente, em 03/02/1998, sendo o primeiro registro do selo publicado somente em 01/11/1998). Além disso, temos os exemplos da La Trappe e da Spencer Brewery (St. Joseph’s Abbey), que produzem diversos estilos de cervejas, inclusive Witbier, Imperial Stout, IPA, Saison, German Pilsner, Vienna Lager, e todas são, por definição, cervejas trapistas. Sendo assim, a cerveja produzida por padre Léopold Masl no mosteiro N. Sra. de Maristela era uma cerveja trapista, mesmo quando consideramos as definições modernas para tal. A primeira e única cerveja trapista do Brasil que se tem registro!
Padre Léopold Masl, primeiro e único cervejeiro trapista a viver e produzir em solo brasileiro, voltou para a Abadia de Notre-Dame de Sept-Fons, na França, aos 81 anos, em 8 de julho de 1931, ano do encerramento do mosteiro de N. Sra. de Maristela no Brasil. Faleceu logo depois, ainda aos 81 anos, em 21 de setembro de 1931 e, em seu obituário, apenas uma observação: “Muito zeloso pelo trabalho manual”.[2]
Atualmente, no local do antigo mosteiro de Tremembé/SP, funciona uma pousada, Fazenda Maristela, e parte da arquitetura original do mosteiro pode ainda ser observada. Após um hiato sem a presença de trapistas no Brasil, em 1977 foi fundado o Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo, no Paraná.[7] Os monges de lá produzem quitutes de padaria (bolos, brownies, biscoitos, etc.) e vendem online (padariatrapista.com.br) seus produtos trapistas, como o famoso Monks’ Cake. Há também apenas outro mosteiro da Ordem no Brasil, de construção mais recente (obras iniciadas em 2010)[7], de monjas trapistas, o mosteiro Nossa Senhora da Boa Vista, em Santa Catarina. Lá, as monjas elaboram outros produtos trapistas, como chocolates e geleias, também disponíveis para compra online (trapistasboavista.com). Infelizmente, até o momento, não há registro de produção de cervejas por eles, nem para consumo próprio. Quem sabe um dia...
Para mais informações sobre os trapistas e suas cervejas, veja a edição nº 45, de março de 2020, da Revista da Cerveja.