Espaço Homebrew, por Lucas Meneghetti
A decocção é um método centenário de mosturação. Embora o avanço tecnológico tenha substituído sua real necessidade, a decocção ainda é utilizada por muitas cervejarias e cervejeiros caseiros.
Hoje em dia, a decocção é conhecida como uma técnica produtiva que gera um perfil sensorial único de riqueza de malte. Mas, mais do que isso, é uma técnica histórica, utilizada há muitos anos, principalmente pelas cervejarias tchecas e alemãs.
Doppelbocks, Weissbier e Bohemian Pilsners são alguns dos estilos tradicionalmente produzidos com decocção e que se beneficiam desta técnica. A decocção era um método tão importante para as cervejas boêmias e bávaras que, antigamente, era chamada de método
boêmio ou método bávaro.
A decocção é uma técnica de mosturação que consiste, basicamente, em retirar uma parte da mostura, ferver separadamente e devolver ao mosto, elevando sua temperatura.
Panorama histórico
A decocção surgiu há centenas de anos e tinha um propósito muito mais prático e metodológico do que sensorial. Como o termômetro só foi inventado em 1714, os cervejeiros precisavam de algum método para controlar a temperatura das rampas de mosturação. Foi pelo método de decocção que resolveram esse problema. Eles perceberam que a combinação de determinada quantidade de água em temperatura ambiente e água fervendo resultava em uma temperatura adequada para iniciar o processo. De forma similar, retirar determinada quantidade de mosto, ferver e devolver à panela resultava em temperaturas adequadas para as etapas da mosturação. Dessa forma, mais do que um apelo sensorial, a decocção garantiu aos cervejeiros padronização e repetitividade.
Além disso, a decocção trazia um relevante aumento em eficiência, já que os maltes eram muito menos modificados do que os maltes que temos hoje em dia (i.e., o processo de malteação era menos tecnológico, o que impunha que o malte fosse mais “trabalhado” durante a mosturação para produzir o mosto adequadamente). Em outras palavras, antigamente, o acesso ao amido era mais difícil e a fervura dos grãos fazia com que o amido ficasse mais acessível para a atividade enzimática.
Benefícios da decocção
Atualmente, sabemos que termômetro não é mais um problema e que os maltes já possuem um grau de modificação que permite que os cervejeiros tenham um rendimento satisfatório. Então por que muitas cervejarias, até hoje, utilizam o método de decocção?
• A decocção traz uma riqueza sensorial de notas de malte que muitos defendem não ser alcançada apenas com maltes especiais. A fervura dos grãos permite que ocorram reações de Maillard e de caramelização e isso contribui com notas de panificação, notas amendoadas e de tosta.
• É possível criarmos uma cerveja mais límpida, pois a fervura estimula uma maior coagulação das proteínas.
• Pode-se verificar um aumento na eficiência da brassagem em função da maior extração e conversão do amido.
Muitos cervejeiros devem se questionar quanto à extração de taninos, já que sempre fomos orientados a não realizar lavagem com água em temperatura superior a 78 °C. Todavia, o mosto fervido possui um pH mais ácido, e a extração de taninos é maior quando temos um pH mais alcalino e um mosto mais diluído. De fato, há uma pequena extração de taninos, mas alguns cervejeiros inclusive defendem que essa pequena concentração de taninos melhora o sabor da cerveja.
O processo
A decocção varia, basicamente, de acordo com três fatores: (I) a quantidade de decocções, (II) o tempo de cada decocção e (III) a “espessura” da parte coletada para a decocção.
I. Existem três tipos de decocção: a simples,a dupla ea tripla. Cada um desses mo
delos de decocção representa o número de vezes que iremos retirar parte do mosto para ferver e, posteriormente, devolver à panela original. A decocção tripla é a mais antiga, a mais tradicional e a mais trabalhosa. Nela, o mosto passa pelas etapas de descanso de acidificação, descanso proteico, sacarificação e mash out. As decocções dupla e simples são simplificações desse processo. Como nem sempre precisamos promover um descanso de acidificação ou um descanso proteico, o processo de mosturação pode se resumir a — por exemplo — uma decocção simples, apenas elevando a temperatura da etapa de sacarificação para o mash out.
II. O tempo de fervura na decocção vai depender muito da receita e do estilo que estamos produzindo. Geralmente, quando estamos produzindo um estilo claro de cerveja e não queremos muita reação de Maillard (que tende a alterar a cor da cerveja), deixaremos menos tempo fervendo (10 a 20 minutos). Entretanto, se é um estilo mais escuro de cerveja e queremos um caráter de malte mais presente, deixaremos mais tempo fervendo (30 a 40 minutos).
III. Quando retiramos parte do mosto para ferver, precisamos decidir se esta parte coletada será mais “concentrada” (ou seja, com uma proporção elevada de grãos) ou mais “rala” (com pouco ou quase nada de grãos). A parte mais concentrada (em alemão, chamada de Dickmaische) geralmente é utilizada nas primeiras decocções, pois visa intensificar a reação de Maillard e melhorar a extração do amido do malte. Já a parte mais rala (em alemão, Dunnmaische) é geralmente utilizada na última decocção, quando não há mais a necessidade de extrair amido, pois a sacarificação já foi concluída.
Para facilitar a compreensão de como funciona um processo de decocção, elaboramos o gráfico abaixo. Utilizamos, como exemplo, a produção de uma Bohemian Pilsner (ou Czech Premium Pale Lager) com tripla decocção.
O processo começa como uma brassagem normal, na qual aquecemos a água da mostura e adicionamos os grãos para darmos início à primeira rampa de temperatura. Em seguida, retiramos parte do mosto para uma panela auxiliar e levamos à fervura. Durante a fervura, precisamos mexer o mosto com uma pá para evitar que queime no fundo. Ao final, retornamos este mosto fervido para a panela original, que consequentemente terá sua temperatura elevada para uma segunda rampa. E assim sucessivamente, até chegarmos ao mash out.
A grande diferença das decocções de antigamente para as atuais é que se acrescentou um processo: antes de fervermos o mosto coletado, elevamos sua temperatura até uma faixa de temperatura de sacarificação. Dessa forma, antes de fervermos e inutilizarmos as enzimas, auxiliamos na total conversão do amido.
Considerações finais
• Cuide para não secar os grãos quando estiver fervendo, isso pode gerar sabores de torra e queimado. Se a receita contém um longo tempo de decocção, talvez seja necessário completar com um pouco de água.
• Para saber qual o volume a ser coletado para a decocção e qual será a temperatura resultante ao devolvermos este volume para a panela de mosturação, utilize um software cervejeiro (como o BeerSmith, por exemplo).
• Comece com uma receita com decocção simples e vá se familiarizando com o processo. Há inúmeras receitas em livros e na internet. Elas, preferencialmente, devem conter as especificações de volumes, temperaturas e a espessura das decocções.
• Os melhores estilos para decocção, na minha opinião, são Bohemian Pilsners, Märzens, Bocks, Doppelbocks e Munich Dunkels.
Boas brassagens!
Dicas de leitura
“New brewing Lager beer: the most comprehensive book for home and microbrewers”, de Gregory J. Noonan (livro).