Reforma administrativa
Rever a excessiva folha de pagamento dos servidores públicos e os custos do poder judiciário, responsáveis por aproximadamente 15% do pib nacional, é crucial para realizar uma reforma administrativa eficiente
Adiferença entre o peso dos impostos sobre os brasileiros e o quanto o Estado consegue retornar com serviços de qualidade à população é uma das mazelas brasileiras discutidas desde a redemocratização. A escalada da carga tributária, que alcança em torno de 36% do Produto Interno Bruto (PIB), é justificada pelo descontrole dos gastos públicos (federal, estadual e municipal), que passaram dos R$ 241,2 bilhões, em 1995 (primeiro ano de vigência do real), para R$ 3,26 trilhões em 2019, de acordo com dados do Tesouro Nacional.
Em 2018, o gasto com a folha de pagamento dos servidores públicos (ativos e inativos) correspondia a 13,4% do PIB, sendo que a média nos países que integravam a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), no mesmo ano, era de 9,9%. Estes números foram destacados na nota técnica “O peso do funcionalismo público no Brasil em comparação com outros países”, elaborada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em outubro.
Juntam-se aos gastos fixos do governo os altos salários e os privilégios pagos ao Poder Judiciário, que correspondem a 1,3% do PIB, segundo o documento da CNI. Assim, o Brasil se afasta de países como Espanha (0,12%), Argentina (0,13%) e Reino Unido (0,14%), onde o Judiciário pesa muito menos.
Segundo Caio Mário Paes de Andrade, secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital,
do Ministério da Economia, o modelo de serviço público, consolidado na Constituição Federal de 1988, não conversa com o mundo atual. “Está mais do que na hora de modernizarmos a administração pública brasileira, deixá-la mais ágil e capaz de enfrentar os desafios que vêm pela frente”, aponta.
Para equacionar os gastos públicos, o governo encaminhou ao Congresso o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 32/2020, que pretende promover uma Reforma Administrava, acabando com privilégios e distorções, como férias com duração superior a 30 dias, estabilidade total na carreira do servidor público e aposentadoria compulsória como punição.
De acordo com Andrade, a PEC 32 é a primeira etapa de um conjunto de medidas que têm como objetivo modernizar a administração, contribuir para o equilíbrio fiscal e oferecer serviços de qualidade. “O que estamos propondo não são simplesmente novas regras para o funcionalismo, mas uma profunda transformação do Estado; são as bases de uma nova forma de administrar o País.”
PRIVILÉGIOS
Por outro lado, o texto da PEC 32 deixa de fora os atuais servidores e também membros de poderes – como magistrados, parlamentares, militares e promotores do Ministério Público.
De acordo com o relatório Gestão de Pessoas e Folha de Pagamentos, do Banco Mundial, com dados de 2018, o servidor brasileiro – que tem estabilidade no emprego – ganha em média 19% a mais que um assalariado do setor privado. Na esfera federal, a discrepância cresce entre público e privado: um funcionário público federal recebe 96% mais do que um profissional em atividade equivalente na iniciativa privada, muito acima da média global de 21%, no comparativo com outros 53 países.
“Não faz sentido deixar os servidores atuais sem esta modernização, [a PEC] também deixa diversas categorias que concentram grande parte das distorções de fora. Haverá uma gigantesca insegurança jurídica se tivermos duas regras distintas para atuais servidores e novos servidores”, afirma Luiz Felipe D’avila, fundador do CLP – Centro de Liderança Pública, entidade que atua na conscientização e na divulgação da Reforma Administrativa no Brasil.
A Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa (FPMRA) foi instaurada em fevereiro para discutir a PEC 32 e possíveis melhorias. De acordo com o deputado Tiago Mitraud (Novo/mg), presidente da FPMRA, o colegiado debate a inclusão dos servidores atuais e de membros de outros poderes. “A inclusão está sendo discutida. Obviamente, existe uma pressão muito grande destes setores contrários
à medida, mas também tem a pressão popular. Será um processo longo de discussões, mas trabalhamos para construir um ambiente de entendimento”, aponta.
O fundador do CLP defende a criação de um regime único para eliminar as regalias, não permitindo que carreiras se tornem feudos de privilégios. “Por que um juiz tem direito a 60 dias de férias, enquanto os demais servidores têm direito a 30? Por que é possível que a elite do funcionalismo tenha direito aos ‘penduricalhos’ (auxílio-moradia e auxílio-viagem e remuneração extra que ultrapassa o teto do funcionalismo, como jetons de conselho de estatais) e a maioria do funcionalismo não tem?”, indaga D’avila, que pede que as regras para a remuneração diferenciada sejam claras e obedeçam critérios de desempenho.
Para o senador Antônio Anastasia (PSD/MG), também membro da FPMRA, a Reforma Administrativa deve ser um processo permanente, e a PEC não irá exaurir todos os problemas dos gastos públicos. “Outros projetos de lei neste sentido também são importantes, como o que estabelece a regulamentação do teto salarial e põe fim aos chamados ‘supersalários’. Privilégios de um pequeno grupo não podem ser considerados direito adquirido.”
Por outro lado, Anastasia avalia que a maior parte dos servidores não está nesse grupo de privilegiados. “Professores, profissionais da saúde e policiais não têm salários acima da média. Pelo contrário. Muitas categorias precisam ser mais valorizadas. Por isso mesmo, acabar com certas distorções também precisa ser uma meta nessa reforma.”
MODERNIZAÇÃO E METAS
A avaliação de desempenho é outra ferramenta proposta pela PEC 32 para melhorar a eficiência do serviço público. Práticas comuns no setor privado, o governo pretende implantar, no serviço público, bonificações e premiações por bons resultados, para estimular o bom servidor e melhorar a qualidade dos serviços prestados.
“É preciso garantir que o sistema dê os mecanismos necessários para que o funcionalismo público entregue serviços de qualidade, com metas bem definidas e plano de bonificação para premiar os bons funcionários, como ocorre na iniciativa privada”, aponta o deputado Mitraud.
No início de outubro, a FPMRA apresentou agenda legislativa com pontos fundamentais para a implementação de metas de desempenho e avaliação precisa de custos e benefícios, a revisão da estrutura de cargos comissionados e a governança salarial entre os poderes, além da criação de um órgão central autônomo que conduza a política de gestão de pessoas.
Para D’avila, é preciso corrigir as distorções do funcionalismo público e estabelecer formas de melhorar a eficiência do Estado, caso contrário, os brasileiros continuarão pagando altos tributos por serviços de baixa qualidade. “O funcionalismo federal tem remunerações muito superiores
às da iniciativa privada. Esta gigantesca discrepância não existe em nenhum outro lugar do mundo. No Brasil, o Estado se tornou um indutor de desigualdade social.”
GASTOS ENGESSADOS
A situação fiscal estatal brasileira beira o caos, com os gastos emergenciais exigidos no combate à pandemia do novo coronavírus (covid-19) prejudicando ainda mais os cofres já debilitados.
As despesas de pessoal impossibilitaram aos governadores realocar mais recursos à área da saúde. De janeiro a junho, o peso com os servidores públicos nos gastos correntes atingiu a média de 56,8% nos Estados, segundo o Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais
(Tesouro Nacional, outubro). A região Sul concentrou os maiores gastos com pessoal em relação à despesa corrente total, com 68,1% nos seis primeiros meses de 2020. A região Sudeste apresentou o menor comprometimento com esta despesa no período (53,2%).
O estudo do Tesouro mostra que os custos com pessoal cresceram mais do que as despesas correntes, ou seja, os Estados brasileiros gastaram mais para pagar os servidores do que no combate à pandemia, que vitimou mais de 150 mil brasileiros – dados consolidados no início de novembro. Enquanto a despesa corrente cresceu 1,6%, o gasto com pessoal cresceu 2,45%, no primeiro semestre do ano.
Esta dificuldade em equacionar as contas estaduais, sem a possibilidade de mexer nos gastos fixos com pessoal, tem assombrado os governos
O que estamos propondo não são simplesmente novas regras para o funcionalismo público, mas uma profunda transformação do Estado; são as bases de uma nova forma de administrar o País.”
caio mário paes de andrade, secretário especial de desburocratização, gestão e governo digital, do ministério da economia