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De potência econômica, argentina passou a ser problema que preocupa o mercado e puxa para baixo o comércio com o brasil
crise “hermana”
HÁexatos cem anos, a Argentina estava tão bem que era cinco vezes mais rica do que o Brasil – e seu Produto Interno Bruto (PIB) per capita correspondia a 75% do norte-americano. Ao longo de um século de crises políticas e financeiras, tudo mudou e, hoje, é um símbolo de instabilidade econômica. O consenso dos especialistas é de que este cenário, cujas perspectivas não são otimistas, impacta diretamente, e de forma negativa, o Brasil.
Em outubro, a cotação oficial da moeda argentina para exportações e importações era 78,30 pesos para US$ 1. No paralelo, o câmbio chegava a 180 pesos. Neste ano, o PIB caiu 7,3%. Para 2021, o Banco Mundial prevê 2% de crescimento. A dívida externa chega a US$ 324 bilhões. A estimativa do mercado é que as reservas internacionais fiquem ao redor de US$ 5 bilhões, mas dados do banco central argentino mostravam, no dia 27 de outubro, que as reservas líquidas somavam US$ 40 bilhões. Para efeito de comparação, as reservas brasileiras, na mesma data, eram de US$ 356 bilhões.
Nesta conjuntura, o governo não sinaliza uma recuperação econômica com mais clareza. A previsão de inflação do mercado para os próximos 12 meses é de 43,9%. No consolidado de setembro, a taxa ficou em 36,6%.
Quais os motivos que empurraram o terceiro maior comprador de produtos brasileiros para a situação atual? O mais importante ocorreu em dezembro de 2001, com a declaração da maior moratória da história do país pelo então presidente interino, Adolfo Rodríguez Saá, cujo mandato foi de apenas uma semana. De lá para cá, o que tem existido é uma sucessão de tentativas frustradas de acertos.
O fator histórico explica a situação. “Desde a década de 1930, a economia da Argentina vem caindo lentamente”, afirma Paulo Roberto de Almeida, diplomata e professor de Economia Brasileira, que atuou no Itamaraty na área de comércio internacional.
Para ele, a derrocada econômica é o fruto dos sucessivos eventos políticos internos. “A crise de 2018 é resultado, por exemplo, da
instabilidade causada pelos golpes de 1930 e 1943. Em 1976, houve outro golpe contra Isabelita Perón, após a morte de seu marido, o ex-presidente Juan Domingo Perón, que, ao assumir o governo em 1945, mudou a Constituição argentina e se reelegeu em 1950. Ele seria reeleito em 1955 se não tivesse sido derrubado pelos militares naquele ano.”
“A Argentina congelou tudo: preços, salários, câmbio, aluguéis. Em 1996, aprovou uma lei de responsabilidade fiscal, mas ela nunca vigorou. Também manipulou o Instituto Nacional de Estatísticas, equivalente ao IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. Quando a inflação real oscilava de 25% a 30% ao ano, o ex-presidente Néstor Kirchner a colocava abaixo de 10%”, afirma o diplomata. Segundo ele, o país chegou a fraudar os indicadores de inflação que enviava para o Fundo Monetário Internacional (FMI), que, depois disso, não aceitou mais as contas públicas do país.
O ex-secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia, Welber Barral – que, atualmente, é conselheiro e sócio-fundador da BMJ, consultoria de relações governamentais e comércio internacional –, afirma que a diferença entre Argentina e Brasil é a tomada de decisões. “Hiperinflação e instabilidade política são problemas que o País também enfrentou, mas conseguiu obter estabilidade política pelo menos até 2013, além de controlar a inflação. A Argentina ficou muito dependente da dolarização a partir da criação do Plano Austral, em julho de 1985. Aqui, no Brasil, o Plano Real foi mais sofisticado porque deu origem a uma moeda livre da dependência direta ao dólar. Essa foi a grande diferença que fez com que não houvesse a dolarização da economia nacional.”
REFLEXOS NO BRASIL
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) afirma que a produção industrial nacional é voltada principalmente ao mercado doméstico e que as exportações respondem por 15% do volume produzido. “Assim, a queda nas vendas para a
Argentina, embora relevante, não traz um risco de desindustrialização”, diz a confederação.
Além das perdas nas exportações de bens industrializados para os hermanos, o segundo efeito, aponta a CNI, pode ocorrer sobre os investimentos nacionais no parceiro comercial, segundo mercado onde o Brasil tem mais multinacionais instaladas [dados da Fundação Dom Cabral de 2017. Os Estados Unidos ocupam a primeira posição]. “Esta crise contribui para que a Argentina imponha mais barreiras aos produtos brasileiros, a exemplo do crescimento no número de licenças não automáticas para a importação de nossos produtos. No contexto do Mercosul, essa crise na Argentina pode fazer com que o país esteja menos propenso a realizar acordos comerciais, o que pode impactar o bloco como um todo.”
O horizonte traz mais aflições para o Brasil na análise do diretor do Departamento de Relações Exteriores da Federação das Indústria do Estado de São Paulo (Fiesp), Thomaz Zanotto. “É bastante preocupante quando verificamos que as exportações em 2011 foram quase de US$ 9,8 bilhões e, neste ano (2020), se mantivermos o ritmo até setembro, vamos exportar US$ 3,3 bilhões, valor igual ao de 2004. Em 2017, só a indústria de transformação do Estado de São Paulo exportou para a Argentina
US$ 7 bilhões, a maior parte formada por automóveis”. Segundo ele, o lockdown mais rigoroso decretado pelo parceiro comercial não pode ser ignorado, mas só teria antecipado um agravamento que estava em curso na economia argentina.
Pedro Brites, professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), afirma que o perfil da economia dos nossos vizinhos mudou muito nos últimos 40 anos, sofrendo um processo de desindustrialização muito grave. “O país tem uma economia que vem dependendo de produtos agrícolas e minerais. Os índices de pobreza e desemprego também afetam o contexto social. Isso sem contar o fato de que a América do Sul passa por um momento de dificuldades, a exemplo do Brasil, e isso também contribui para a crise da Argentina”, afirma.
Para o professor e diretor-geral das Faculdades Integradas Rio Branco (FIRB), José Maria de Souza Júnior, há uma clara falta de convergência entre os atores nacionais argentinos em prol de uma agenda de retomada. “Após o mandato do ex-presidente Carlos Menem, a Argentina teve dificuldade de sair da crise econômica. As reformas criaram uma situação que faz com que a política e a economia não conversem”, avalia.
A Argentina ficou muito dependente da dolarização a partir da criação do Plano Austral, em julho de 1985. Aqui, no Brasil, o Plano Real foi mais sofisticado porque deu origem a uma moeda livre da dependência direta ao dólar.
PERSPECTIVAS
Para começar a trajetória de recuperação, Barral afirma que a Argentina precisa negociar a dívida externa com o Fundo Monetário Internacional (FMI) [o país deve US$ 44 bilhões ao órgão] e demais credores externos e incrementar o baixíssimo estoque de reservas internacionais.
Todd Martinez, analista e especialista na Argentina, atuante em Nova York da agência de classificação de risco Fitch Ratings, afirma que o país precisa encontrar um modelo de crescimento que dependa muito mais das exportações e do investimento privado. “Isso exigirá uma formulação de políticas mais previsíveis, bem como reformas estruturais para melhorar a competitividade. As perspectivas para ambos não são animadoras no momento.”
welber barral, sócio-fundador da consultoria bmj e ex-secretário do ministério da economia