MULHERES DE PODER
PELOS OLHOS VERDES DA VINHATEIRA
Ahistória do vinho brasileiro vem passando pelos olhos de Beatriz Dreher Giovannini desde que ela os abriu, há quase 76 anos, em Bento Gonçalves (RS). Da infância entre parreirais e pipas, ela passou à adolescência testemunhando a pujança do negócio paterno, a empresa Dreher – essa mesmo, a do conhaque, e viu a família deixar o ramo definitivamente. Anos depois, ao lado do marido, Ayrton, comprou uma das propriedades que outrora haviam pertencido à Dreher e, meio sem querer, voltou às origens fundando a vinícola Don Giovanni, uma das mais charmosas e prestigiadas da Serra Gaúcha.
Com seus brilhantes olhos verdes, Beatriz segue mirando a história a partir de dentro. Apesar de ter transferido ao genro, Daniel, e aos filhos, Fábia e André, o comando da vinícola, Dona Bita, como é carinhosamente conhecida, segue presente. Mesmo quando não está no complexo enoturístico localizado no alto de uma colina, no município de Pinto Bandeira, que já foi distrito de Bento Gonçalves e emancipou-se há alguns anos.
Foi ela quem plantou as primeiras mudas de alcachofra, que há anos dão sabor a um delicioso risoto servido nos jantares harmonizados. Também foi dela a ideia de transformar o velho casarão em pousada. A paixão de Bita por arte deu origem a um projeto singular, no qual artistas gaúchos emprestaram seu olhar sobre o mundo do vinho para produzir telas e esculturas que hoje ornam quartos e áreas comuns.
A presença de Beatriz, porém, é muito maior do que isso. Voz atuante em favor do protagonismo feminino na viticultura, rejeita rótulos e ocupa com consciência e orgulho o lugar de pioneira. “Para mim, nunca foi difícil ser mulher nesse meio.
Sou respeitada pelos cantineiros, todos me tratam com reverência. O mundo do vinho é feito por mulheres, que estão presentes em todas as etapas.
Aliás, são as mulheres que compram mais vinho. Esse universo é nosso”, dispara Beatriz.
Por volta de 1910, a família Dreher desembarcou em Bento Gonçalves, o coração da imigração italiana no Rio Grande do
Sul. Com o sobrenome alemão veio também a receita do brandy, o destilado de vinho chamado popularmente de conhaque, pelo qual a companhia ficou conhecida. No interior do então distrito de Pinto Bandeira foram plantados os vinhedos e montada a fábrica. A qualidade do produto fez o sobrenome de Beatriz ficar conhecido em todo o país. Mortes na família, instabilidades na economia e até a mudança na legislação que permitiu a alteração da fórmula original do conhaque tiraram a família Dreher do negócio na década de 70, com a venda da companhia para um grupo americano.
Poucos anos depois, os olhos verdes de Beatriz voltaram a brilhar pela possibilidade de adquirir a propriedade de Pinto Bandeira, que havia abrigado o centro tecnológico da Dreher. O casarão estava fechado e os vinhedos abandonados. O que foi adquirido para ser uma casa de campo, um refúgio para a família com os filhos pequenos, não demorou para se tornar a vinícola Don Giovanni.
“Eu e o Ayrton fazíamos tudo, engarrafávamos o vinho, colávamos os rótulos, era uma produção apenas para a família e os amigos, que não chegava a mil garrafas. E a coisa foi crescendo ao natural, sem planejamento, mas com muito amor pelo vinho que fazíamos”, relembra. Também foi assim, ao natural, que o casarão construído nos anos 1930 e no qual Beatriz brincava na infância tornou-se a segunda vinícola-pousada da Serra Gaúcha, há 25 anos. “De repente, olhamos a estrutura e pensamos que bastava abrir. A pousada já estava ali.”
Hoje a Don Giovanni vive um processo constante de evolução e modernização. A reconversão dos vinhedos, que vem ocorrendo desde que Beatriz retomou o controle da propriedade, intensificou-se nos últimos anos para extrair o máximo do terroir de Pinto Bandeira, extremamente favorável à vinificação de espumantes – que representam 80% das 120 mil garrafas produzidas anualmente pela vinícola. Há seis anos, a propriedade vem migrando para um modelo de cultivo biodinâmico, com redução gradual de uso de defensivos. É o modelo biodinâmico que possibilita, aliás, uma das atrações para os turistas: o pôr
do sol nos girassóis. Plantados entre os vinhedos para atrair pássaros durante o período da vindima e evitar que eles comam as uvas, a paisagem é ideal para um brinde nas tardes frescas de verão.
Beatriz ainda é sinônimo de vinho e tradição. É raro o dia em que algum turista não chegue perguntando se Dona Bita está por ali. Ao percorrer a adega e o varejo, o visitante se depara com um rosto familiar na garrafa de um dos espumantes: é Beatriz quando jovem, estampando o rótulo super premium da vinícola, o Dona Bita, espumante elaborado com o corte clássico de Chardonnay e Pinot Noir pelo método tradicional, com 70 meses de maturação, lançado para celebrar os 70 anos de Bita. “Sempre quis ter um espumante com meu nome, mas queria desfrutar disso em vida. É uma linda homenagem, sem contar que o espumante é muito bom”, afirma.
Mais recolhidos em função da pandemia, Beatriz e Ayrton visitam menos o complexo enoturístico. Acompanham de longe os novos projetos, que foram acelerados em função da crise do coronavírus. Em parceria com o chef Rafael Jacobi, está prestes a ser inaugurado o Nature – Vinho e Gastronomia, uma iniciativa que une os produtos Don Giovanni à gastronomia contemporânea em diversos formatos, desde um restaurante intimista até piqueniques ao ar livre – opção procuradíssima em tempos de distanciamento social. A inspiração? É ela, claro, que há décadas começou a servir jantares harmonizados para os hóspedes com receitas caseiras, no porão do casarão.
Na espera pela vacina e pela redução dos riscos de contrair Covid-19, Beatriz curte, ao lado de Ayrton, pequenos prazeres como a leitura, os filmes e as viagens curtas. Também pratica com disciplina o hábito que herdou da família: provar vinhos. De todos os tipos, preços e origens. É com base nessa intimidade com a bebida da sua vida que ela se torna uma das vozes mais contundentes na defesa do produto nacional. “Temos vinhos de grande qualidade no Brasil, apesar de sermos ainda muito jovens na arte da viticultura. Temos tecnologia e conhecimento para seguir construindo a nossa história no mundo do vinho. A gente precisa é superar o preconceito para apreciar o que temos de melhor”, salienta, com um entusiasmo que transborda por aqueles grandes olhos verdes.