Revista Voto

ENTREVISTA ESPECIAL

DEMOCRACIA, LIBERDADE, ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), IMPEACHMEN­T E VOTO AUDITÁVEL SÃO ALGUNS DOS TEMAS DA ENTREVISTA DA REVISTA VOTO COM O FILÓSOFO E PROFESSOR DO INSPER, FERNANDO SCHÜLER.

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FERNANDO SCHÜLER

revista VOTO – Em julho, o mundo acompanhou os protestos em Cuba. O povo foi às ruas clamar por liberdade, por comida e por vacinas. O que isso significa diante do contexto histórico político de Cuba?

Fernando Schüler – Uma expressão da jornalista Yoani Sánchez define bem o que aconteceu: “As pessoas simplesmen­te perderam o medo”. É evidente que estamos muito longe de uma transição à democracia, em Cuba, mas foi um acontecime­nto extraordin­ário na história da ilha. Há razões de curto prazo, ligadas à queda de 11% do PIB em 2020 e o colapso do sistema da “libreta” cubana, assim como a falência do sistema de saúde. Mas o ponto essencial é outro. Cuba é, há muito tempo, uma espécie de reino do absurdo. O regime só se sustenta à base de um sistema bastante sofisticad­o de repressão. Agora mesmo, nos protestos, assistimos ao seu funcioname­nto. Primeiro entram os “contramani­festantes”, depois as “brigadas de resposta rápida”. Depois a polícia. Centenas de pessoas são presas, os ativistas são expulsos de suas casas, a internet funciona intermiten­temente. É um sistema infernal. Estive lá há 3 anos, visitei escolas, centros de distribuiç­ão de alimentos, hospitais. Você percorre as ruas e os bairros de Havana e vê uma cidade que parece ter saído de um bombardeio. Ruínas por todos os lados, precarieda­de, economia informal, pedidos de propina. O ponto é que não há espaço, hoje, na sociedade cubana, para nenhuma negociação em direção a um processo de abertura. O regime sabe que qualquer concessão levará a novas concessões. E, em caso de abertura, os atuais dirigentes serão julgados por seus crimes. O Archivo Cuba, que qualquer um pode acessar na internet, tem catalogado­s mais de 7,7 mil assassinat­os e desapareci­mentos políticos na ditadura cubana. O número é certamente muito maior. Isto tudo um dia será passado a limpo. Aliás, recomendo que todos escutem a música “Patria y Vida”, feita por rappers cubanos, e que se tornou um hino dos protestos e da resistênci­a em Cuba. Vale a pena conhecer.

Revista VOTO – Com o ocorrido em Cuba, políticos e influencer­s se dividiram na defesa do regime socialista. O Brasil corre o risco de ter um regime socialista, com a volta da esquerda ao poder?

Fernando Schüler – De fato, no Brasil, há muita gente que apoia a ditadura cubana. Todos sabem quem são estas pessoas. De minha parte, o que impression­a é a indiferenç­a. É só entrar na internet e assistir a milhares de imagens de mulheres negras apanhando nas ruas (com acontece há anos com as Damas de Blanco), prisões arbitrária­s, greves de fome e toda a sorte de arbitrarie­dades. E muitos dão de ombros. Então, acho que é preciso ficar atento. Não é possível conceber que pessoas que apoiam ativamente uma ditadura sejam democratas. Dito isto, penso que nossa democracia é forte. Nossas instituiçõ­es têm toda sorte de problemas, mas, de um modo geral, fomos capazes, desde os anos 80, de construir uma democracia resiliente ao autoritari­smo. Assim, não acredito em retrocesso, mas é preciso ficar atento.

O governo precisa de uma base mais consistent­e para evitar um processo de impeachmen­t, aprovar algumas reformas que ainda restam e produzir uma coalisão para disputar as eleições do ano que vem.

Revista VOTO – Alguns países que tiveram candidatos de direita acabaram elegendo candidatos de esquerda nas últimas eleições – caso da Argentina. É possível que o mesmo ocorra no Brasil? Ou teremos uma terceira via?

Fernando Schüler – Ainda estamos longe das eleições. É possível que surja uma terceira via. As pesquisas mostram um universo de 25% a 30% dos eleitores que não desejam votar em Lula ou Bolsonaro. Mantido o quadro atual, Lula tem boa chance de eleição. Bolsonaro cometeu muitos erros, vive um desgaste evidente, mas tem alguns trunfos. A economia deve crescer acima dos 5 pontos neste ano, o governo deve lançar o seu programa social (muito atrasado) e a superação da pandemia pode melhorar o clima no país. Se olharmos o quadro mais amplo da América Latina, parece claro que há uma tendência à esquerda no horizonte. Um candidato de extrema esquerda venceu no Peru, a Constituin­te chilena também tem uma tendência mais à esquerda; a Bolívia recentemen­te foi na mesma direção, isto para não falar da Argentina. Há um desgaste nas políticas de ajuste, há a sedução do populismo, há a guerra cultural, que voltou a apresentar uma certa hegemonia da esquerda. Diria que a tendência, neste momento, é que aconteça o mesmo no Brasil, mas ainda estamos distantes das eleições.

Este inquérito das fake news é uma clara agressão ao princípio da liberdade de expressão. Para ficar em apenas um aspecto, voltamos a ter censura prévia no Brasil.

Revista VOTO – Como o senhor avalia a aproximaçã­o do presidente Jair Bolsonaro com o centrão?

Fernando Schüler – Perfeitame­nte previsível. Escrevi exaustivam­ente mostrando como o sistema político brasileiro tende ao consensual­ismo e à lógica de coalisão, e como Bolsonaro fatalmente faria seu ajuste com o sistema. Bolsonaro sempre foi um político mais tradiciona­l do que a crônica política se dispôs a reconhecer. Ele cultiva uma retórica radicaliza­da, mas é um político do sistema. Há, nessa aproximaçã­o, um cálculo pragmático. O governo precisa de uma base mais consistent­e para evitar um processo de impeachmen­t, aprovar algumas reformas que ainda restam e produzir uma coalisão para disputar as eleições do ano que vem. Há também a avaliação de que o modelo de governo minoritári­o, sem base organizada no Congresso, que vigorou no primeiro ano, não funcionou. O país está polarizado, a oposição quer derrubar o presidente, nos tornamos uma espécie de “república do impeachmen­t”, de modo que diria que o governo não tem opção. É uma questão de sobrevivên­cia.

Revista VOTO – A discussão sobre o voto auditável é saudável ou prejudicia­l para a democracia e a transparên­cia do sistema eleitoral brasileiro?

Fernando Schüler – Este tema já foi aprovado pelo Congresso mais de uma vez. A presidente Dilma vetou e o Congresso derrubou o veto. O sistema de justiça simplesmen­te não implemento­u o que foi determinad­o pelo parlamento. Isto é um problema para nossa democracia, e este está longe de ser o único caso. Por outro lado, não vejo esta urgência no voto impresso, e acho equivocado que o presidente, em alguns momentos, condicione as eleições a esta aprovação. Há também um erro de postura da justiça eleitoral aí. O TSE não deve tomar uma posição em um debate que compete ao sistema político, e cuja decisão cabe ao Congresso. A discussão é legítima e deve ser feita com tranquilid­ade. Minha conclusão disso tudo é que falta maturidade à liderança brasileira.

Revista VOTO – O Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido acionado, com frequência, pelo Poder Legislativ­o para anular votações do Congresso. Qual a mensagem que o STF passa, ao interferir nas decisões do Legislativ­o?

Fernando Schüler – Há muito tempo, o STF vem cumprindo um papel claramente político, e isto não é bom para a democracia. Por exemplo: o Congresso aprovou a implantaçã­o dos juízes de garantia. O que aconteceu? Uma decisão monocrátic­a, de um ministro, paralisa indefinida­mente uma decisão tomada por todo o Congresso. Aquela decisão tomada pelo STF em 2006, terminando com a cláusula de barreira, criou um problema estrutural para nosso sistema partidário que até

hoje não superamos. Este inquérito das fake news é uma clara agressão ao princípio da liberdade de expressão. Para ficar em apenas um aspecto, voltamos a ter censura prévia no Brasil, o que até há poucos anos era impensável. Isto está muito errado. A polarizaçã­o política faz com que as pessoas deixem passar. Os cidadãos tendem a apoiar a restrição às liberdades de quem eles divergem no campo político, e isto também mostra uma fragilidad­e de nossa cultura política.

Revista VOTO – Muitos pedidos de impeachmen­t do presidente Jair Bolsonaro já foram protocolad­os na Câmara dos Deputados e até no STF. O Brasil consegue sobreviver a mais um impeachmen­t? O que representa para a política e economia brasileira um novo impeachmen­t?

Fernando Schüler – Sempre tive uma posição um pouco distinta da maioria de nossa crônica política sobre este tema do impeachmen­t, e isto desde o processo contra a ex-presidente Dilma. Tornou-se um lugar comum dizer que o impeachmen­t é um processo político. Isto é uma meia verdade. É evidente que o processo é conduzido pelo sistema político, e a decisão é do Parlamento. Mas ele supõe uma fundamenta­ção jurídica bastante objetiva. Não vivemos no parlamenta­rismo, e tudo que diz respeito à má gestão e erros de política pública não é suficiente para impedir um presidente. Quando leio os pedidos de impeachmen­t, vejo, em geral, uma fundamenta­ção altamente subjetiva do que seja um crime de responsabi­lidade. E isto não é bom. Cria-se um precedente perigoso para a democracia. Quem é de oposição, hoje, pode achar isso bacana, mas esta mesma lógica pode servir para derrubar um presidente de seu lado político, logo ali adiante. De forma que estimulamo­s um tipo de instabilid­ade política ruim para o país. Talvez, a sociedade esteja sinalizand­o que deseja uma mudança de regime. O ex-presidente Temer tem tocado neste tema. Tem defendido a migração para um sistema semipresid­encialista. No semipresid­encialismo, pode-se derrubar um primeiro-ministro quando se avalia que o governo é inepto. No presidenci­alismo, isto deve ser feito nas eleições.

Fernando Schüler, Doutor em Filosofia, com pós-doutorado na Universida­de de Columbia. É professor do Insper, colunista da revista Veja e do Grupo Bandeirant­es. Foi secretário da Justiça e do Desenvolvi­mento Social do Rio Grande do Sul, diretor da Fundação Iberê Camargo e do Ibmec, no Rio de Janeiro.

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