Revista Voto

MARCELO TOGNOZZI

- MARCELO TOGNOZZI Jornalista e consultor independen­te

O SEQUESTRO DO JACARÉ

HÁna tradição política brasileira a crença de que cocar de índio dá azar. Se a ave da qual foram retiradas as penas não morreu, pior ainda. Numa terra como a nossa, onde as crendices e as superstiçõ­es fazem parte da formação do homem comum, aquilo que dá sorte ou azar tem um imenso valor. Tancredo vestiu o cocar e morreu antes da posse. Lula e Dilma adoeceram. O doutor Ulysses Guimarães teve de encarar um tratamento com lítio para recuperar o bom senso depois de encarar um cocar.

Lá nos idos dos anos 1980, os então senadores José Sarney, Itamar Franco, Alexandre Costa e Jarbas Passarinho moravam na mesma prumada do bloco G da SQS 309. Passarinho decidiu enfeitar o hall do elevador do seu apartament­o com um jacaré empalhado, presente de um eleitor do Pará. Pendurou o bicho na parede, bem ao lado da sua porta. Pouco tempo depois, dois senadores que viviam no mesmo prédio morreram. Outros adoeceram.

Sarney, que era vizinho de Itamar, o convocou para uma conversa urgente. Veio também Alexandre Costa, maranhense como Sarney. Os três não tinham dúvidas de que o culpado pelos sinistros acontecime­ntos era o jacaré de Jarbas Passarinho. Elaboraram um plano de ação para sumir com o bicho. Costa ficou encarregad­o de atirar o bicho no Lago Paranoá. Dito e feito. Passarinho ficou irado, fuçou, investigou e levou uma década para descobrir os culpados pelo sequestro do seu jacaré de estimação.

Culpado ou não pelas desgraças que se abateram sobre o prédio dos senadores, depois do sumiço do jacaré a vida mudou e a sorte voltou a sorrir. Sarney virou vice de Tancredo Neves e acabou presidente da República. Itamar trilhou o mesmo caminho como vice de Fernando Collor. Num jantar em 1990, na casa do jornalista Carlos Castello Branco, Sarney, presidente que encerrava o mandato, encontrou Itamar, o vice eleito que dali a poucos dias tomaria posse. Os dois se abraçaram e riram muito relembrand­o a história do jacaré.

Sarney sempre teve suas crenças. Cocar de índio, por exemplo, não usa de jeito nenhum. Certa vez, a segurança da Presidênci­a foi acionada para fazer com que o cacique Raoni desistisse da ideia de coroar o presidente com um vistoso e colorido cocar. Ele se recusa até hoje a receber visitantes que estejam vestindo terno marrom. Pode ser o sujeito mais ilustre com o terno da melhor grife. Sarney dará um jeito de sair pela tangente.

Antônio Carlos Magalhães (ACM) também não gostava de gente com terno marrom. O jornalista Elio Gaspari registrou que o baiano levava penduradas no pescoço duas correntes com 19 santinhos e amuletos. Tinha de tudo, desde imagem de Santa Helena (nome da sua mãe) e Santo Antônio, até um Agnus Dei com uma lasquinha da Santa Cruz.

Numa ocasião, quando era governador da Bahia pela segunda vez, ACM compareceu a uma solenidade no Terreiro do Gantois, em Salvador, um dos mais importante­s centros de candomblé do Brasil. Mãe Creusa, filha e herdeira espiritual de Mãe Menininha, se aproximou dele, rezou, defumou, deu passes. O político firme, ereto, devoto. Quando Mãe Creusa terminou a benção, ACM falou baixinho: “agora eu posso tudo”.

Getúlio Vargas tinha uma queda pelas previsões do médium paulista Sana-khan. Num fim de tarde de 29 de agosto de 1929, Getúlio estava fumando seu charuto no salão do Hotel Glória, no Rio, em companhia de Flores da Cunha, Lindolfo Collor, Paulo Godoy e João Neves da Fontoura, quando o deputado paranaense Correia Defreitas chegou trazendo um jovem de uns 30 anos chamado Sana-khan, apresentad­o como médium e vidente.

O jovem pediu para ler a mão de Getúlio Vargas e disse o seguinte, de acordo com o relato de João Neves da Fontoura: “Uma bela estrela como esta, na região chamada monte de Júpiter, já é bem rara. V. Exa. possui quatro estrelas! Uma na mão direita e três na esquerda. Caso raríssimo! (...) Cada estrela tem seis linhas e representa um período de seis anos. (...) Júpiter na mitologia é o rei dos deuses, encarna liderança, governo, lei, suprema magistratu­ra. Uma estrela jupiterian­a apenas já significar­ia estrutura de chefe, de condutor, de

Numa terra como a nossa, onde as crendices e as superstiçõ­es fazem parte da formação do homem comum, aquilo que dá sorte ou azar tem um imenso valor.

pessoa talhada a liderar os demais. V. Exa. nasceu predestina­do como homem de governo e atingirá, com toda a certeza, a Presidênci­a da República”.

Em outubro do ano seguinte, Getúlio liderou a Revolução de 1930, ficou 15 anos no poder, foi deposto pelas Forças Armadas e voltou pelo voto na eleição de 1950. Jânio Quadros se pegou com Sana-khan e o ouvia para quase tudo.

Mas nem sempre os videntes acertam. Mãe Dinah, vidente famosa na TV, arriscou previsões sobre Fernando Collor, garantindo que ele faria um excelente governo e seria um presidente de pulso firme. Neila Alckmin, que JK adorava, também errou ao prever que Afif Domingos ganharia as eleições de 1989.

Sorte ou azar, há muito mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã filosofia, ensinou Shakespear­e. Até o general Golbery do Couto e Silva, intelectua­l e racional, não resistiu a convidar um pai de santo para analisar os fluidos do seu gabinete no Palácio do Planalto. O homem não passou da sala de espera. Suando e com tremelique­s, em poucos minutos fugiu dali como o diabo da cruz, dizendo que nunca estivera num lugar tão carregado. E Golbery nunca meteu um cocar na cabeça. Nos sete anos em que comandou a Casa Civil de Geisel e Figueiredo, era uma espécie de para-raios do governo. Nem o jacaré do senador Passarinho foi capaz de juntar tanto carrego.

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